quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Não é uma despedida

Não é uma despedida. É um agradecimento reconhecido a todos os que, desde abril de 2013, me acompanham neste espaço onde venho partilhando sentimentos e ideias na forma de esboços literários.
Não é uma despedida. É uma nostalgia antecipada neste olhar sobre toda a escrita que por aqui fui deixando, mãos abertas em prosa ou abraço poético intimista. Há uma sensação de dever cumprido por ter-me dado a conhecer nestes anos, depois da longa travessia em que, no sussurro de um casulo de gavetas, apurei o meu grito de abrir asas.
Não é, pois, uma despedida. Apenas a notícia de que vou lançar-me num voo maior. A partir de agora, deixarei de dizer-me neste espaço e estarei no meu novo site, onde revisitarei alguns dos textos que aqui escrevi e publicarei inéditos, onde partilharei conteúdos diversificados e darei as mãos a outros escritores e artistas, em encontros e parcerias.
Não é, decididamente, uma despedida. É um convite: a partir de 1 de dezembro, quero dar-vos as boas-vindas em https://alvarocordeiro.pt.
Lá vos espero. Obrigado por estarem comigo. Até já!

domingo, 24 de novembro de 2019

Ficção XXV - Esperança na espera

Deitou-se à espera dela. Antecipava-lhe a chegada, de olhar fito na porta fechada que seria desnecessário abrir. Ela estava do outro lado, sabia-o bem, postada numa espera paciente, inexorável. A duração da expectativa dependeria da noção que ela, do outro lado, tivesse do momento certo, do seu sentido de oportunidade, não de pressa. Ela nunca tinha pressa, considerou ele, deitado à espera desde que o anúncio dela lhe soara dentro em sintomas vagos. Foram tonturas esboçadas, primeiro, depois dores discretas aparentemente inócuas. A seguir vieram os tremores, os gestos tolhidos, as descoordenações inexplicáveis. Até ao diagnóstico, um envelope fechado entregue em mão num gesto mecanicamente afetuoso, uma espécie de palmadinha nas costas esterilizada. O veredito de uma doença incurável, degenerativa. Uma sentença final sem data de execução.
Deitou-se à espera dela, desde então. Em tudo o que fazia permanecia deitado à espera, em todas as conversas que travava, em todas as deslocações em que parecia já não ir a parte alguma, em todos os sonhos que invariavelmente desembocavam no beco sem saída de não haver espaço nem tempo para concretizá-los.
Às vezes, no leito daquela insuportável expectativa, desejava apressá-la. Ou, ao menos, precipitá-la num último ato de dignidade. Sabia que, na sua implacável crueldade, ela esperaria até ao limite, do outro lado da porta fechada. Talvez a entreabrisse numa dor aguda ou num espasmo lancinante, sopro de infundada esperança inconsequente. Mas esperaria, prolongaria até ao limite, e porventura para lá dele, a lentidão da decadência e da perda, assistiria sem ver ao despojamento de toda a sua humanidade física, intelectual, espiritual e moral. Então, quando nada mais lhe restasse a não ser a existência, abriria então a porta num último gesto escancarado para vir colhê-lo, já putrefacto mas ainda não cadáver.
Deitou-se à espera dela. Porém, por dentro, permanecia erguido na esperança. Porque sabia que, na hora marcada, a porta se abriria para um túnel de luz e tudo o que restava dele seria sorvido num vórtice de surpresa e transcendência, uma paz que antecipava na expectativa impotente, o movimento contido na inércia, a esperança alimentada na espera. Sabia que ela viria tomá-lo pela mesma mão que o trouxera para o choro primeiro, a mesma ternura na viagem dolorosa, o mesmo sofrimento de amor. Algo por que valia a pena todo o caminho que restava, por mais pedregoso e arrastado que fosse.
Deitou-se à espera dela, porque sabia. Sabia porque acreditava.

domingo, 6 de outubro de 2019

Texto centésimo

Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, acolho o sol generoso que me inunda, luz e calor, graça que nunca agradeço bastante. Na calma matinal respiro uma vontade de chuva, bela na sua necessidade, perfeita no seu incómodo. Vem-me um sabor agridoce de recordações ambíguas: o céu escurecido largando o seu chumbo em descargas que me inundam de tristeza e desconforto; a seguir o cheiro colorido da terra depois da chuva, espécie de arco-íris de frescura interior, algo como um odor de gravidez que me lembra origem e ressurreição.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono. Mesmo em pleno dia, o negrume da cidade sempre me ensinou, talvez por privação, a policromia da natureza: o castanho da terra, o verde da floresta erguida a recortar o azul do céu por entre a alvura das nuvens, a transparência camaleónica da água verdejante na melodia dos regatos, azulada no espelho do mar, cinzenta no empedernido das fontes, morena na tepidez dos oásis; por ser incolor dá-se a todas as cores e, assim, tudo nos dá.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, o horizonte de civilização faz-me ajoelhar numa vergonha de culpado, o meu braço aberto pesa-me como cabeça deposta no cepo, aguardando a merecida pena. Pecamos contra a natureza que nos castiga sem querer, o seu movimento de retribuição é uma luta surda entre a gratuidade e a cobrança. Somos nós os devedores: espezinhamos a terra que nos é pródiga, corrompemos o ar que nos vivifica, rebaixamos o fogo a carrasco de uma devastação autofágica, esbanjamos a água de que somos feitos, desprezamos a vida em todas as espécies possíveis, na nossa também. Sabemos o que continuamos a querer ignorar, somos insensíveis porque recusamos sentir.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, a brisa que nasceu pura abraça-me numa fraqueza poluída, é um choro de mãe traída pelos filhos que amamenta. E peço ao Deus de tudo que nos desperte uma sensatez que nos salve. Em cada gesto nosso. Hoje.

domingo, 29 de setembro de 2019

Texto nonagésimo nono

Entro no quarto vazio da minha solidão procurada, fecho a porta das vozes que me atordoam, canto de sereias que amiúde me seduz. Sento-me no chão da minha ingenuidade antiga, há um tapete encardido que me priva agora do frio revigorante do soalho, tábua rasa que outrora fui. De pernas cruzadas sobre a consciência de mim, cerro as persianas do olhar, faço escuro por dentro. Invoco o mais íntimo de mim, essa máxima elevação onde te busco, esse completo abismo onde me encontras. Há uma chama solitária que em mim grita a tua luz, quero banhar-me nesta quietude em que todo te dizes no meu ser, a surdez de que me fiz não deixa. Entrego-me nesta revolta em que fujo, castigo-me na dor do perdão que me infliges. Eis-me.
Invento-me no mistério que sou, desvendo-me na evidência que és em mim. Não me entendo nada, só quero abrir os braços da prece atormentada para que me acolhas, na esperança de que me acolhas. Chamo-te nas palavras que em vão me repito, sei que a tua resposta está no eco demolidor dos silêncios que me rejeito. Não me entendo nada, nem quero nem sei, ponho-me todo na súplica de que não precises de entender-me, nem queiras porque sabes. Agarro-me à dor do teu perdão como asas de anjo que me salvem do abismo, cedo à injustiça do teu amor que não consigo. Acorrento-me a esta finitude em que me libertas sempre. E creio. Eis-te.
Reabro as persianas, descruzo as pernas. Há um caminho de luz para lá da porta escancarada. Não entendo nada, avanço. Desço a montanha rumo ao vale de lágrimas onde me esperas neles. Eis-nos.

domingo, 17 de março de 2019

Texto nonagésimo oitavo

O caminho estreito alcatroado entrava-lhe pelos olhos dentro na vastidão com que se lhe estendia pela frente. O menino largou a mão do avô e ficou estático na contemplação daquele rumo sinuoso. Havia um banco na berma, junto à valeta empedrada, um ornamento de ferros pintados de negro servindo de estrutura à simplicidade de duas pranchas vermelhas. O avô sentou-se, descansou a sabedoria que dele transbordava na paciência de observar o menino, sorriso resplandecente de olhar o inexorável destino que se lhe desenrolava diante.
O menino moveu a cabeça, rodou o olhar pelas árvores em volta: identificou os eucaliptos, conhecia-lhes a altura implacável, sabia-lhes a inconfundível curvatura das folhas derramadas pelo chão, atapetando a terra húmida, fundindo-se nela em harmonia perfumada. Os aromas… E havia também as bagas, graciosas e duras, que muitas vezes caíam no caminho onde ele se desabituara de pontapeá-las desde que o avô lhe ensinara que não se agride a natureza a que pertencemos.
Entre os eucaliptos rareavam pinheiros teimosos, vestígios da anterior vegetação dominante, segundo o avô contara. O menino achava-os mais bonitos do que os eucaliptos, o tronco mais castanho, a ramagem mais frondosa, a caruma mais verde. E as pinhas, fantásticas obras de arte que ele tantas vezes recolhia e levava para casa, onde certa vez o seu pai se lembrara de, escolhendo as mais perfeitas, pintá-las em tons de oiro e prata para adornarem a base da árvore de Natal.
Voltou a fixar o olhar no caminho à sua frente, mas os sentidos vagueavam-lhe agora pelos sons, o vento versejando por entre os ramos, o chilreio de pássaros diversos fornecendo rimas àquele universo poético. Concentrou todo o seu tato nas plantas dos pés, sentiu a terra subir-lhe pelo corpo, crescer por ele e possuí-lo em todo um hino da criação.
Parecendo distraído, o avô eternizou-se em breves segundos de contemplação, grato pelo imenso mundo interior que transparecia no menino, pelo universo de sensibilidade que o habitava. Depois levantou-se devagar, aproximou-se. O menino olhou-o com aquela veneração inocente que sempre lhe escorria dos olhos. O avô passou-lhe a mão pela cabeça, numa carícia deslumbrada. E disse:
— Hás de escrever isto, um dia.
Tomou-o pela mão e continuaram o passeio pela mata.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Texto nonagésimo sétimo


Escrito há vinte e muitos anos para uma peça de teatro musical de que fui autor e encenador (e intérprete, também…). Exprimindo esse embrulho de contradições e buscas que sempre me foi casulo, revela uma infância poética que me acorrentava à rima e só me autorizava a fugir da métrica para ir em busca do ritmo da música, essa outra métrica mais forte.
Com as evidentes ingenuidades, é um testemunho do meu percurso literário que me apraz partilhar…

Trago a vida sem fiel nem prumo
Perco-me por noites de dilema
Às vezes queria ter um rumo
E fazer da vida um poema

Mas ergo castelos de amargura
Trago a solidão por diadema
Só queria ter uma alma pura
E fazer da vida um poema

É o poema da vida
Tão enrouquecida que eu quero cantar
É no poema da vida
Quem sabe perdida que eu quero encontrar
O apoio, o apoio
Que me anime a caminhar
E me ensine a separar
O trigo do joio.


domingo, 10 de fevereiro de 2019

Dizer a imagem 16 - Afinal?...



Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Há um abandono de pregas desordenadas, uma inutilidade de biqueiras alinhadas, um vazio. Histórias incompletas de uma vida que acabou. Uma ausência, um desejo de mais, uma saudade. O que resta de nós quando nos vamos sem aviso? O que fica no aviso com que premeditamos uma inevitável partida?
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Há um luto que alastra como enchente poluída, todas as cores se diluem num desgosto negro sem voz, a própria luz de tudo parece sufocar no tenebrismo opaco de nada mais.
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível. Mas as memórias todas chovem teimosas, ensopam a secura das vestes na humidade dos passados que ainda, as tábuas do soalho absorvem a muda transparência do meu corpo que já não. Pleno é o meu nome na boca de todas as lembranças, a interpelação luminosa que inunda o oco negrume da ausência, a ânsia de ficar.  
Já me fui embora das roupas que me tornavam visível, grito-me em tudo o que resta na ânsia de ficar. Entre a brevidade e o eterno, permaneço afinal?

(Fotografia de Jorge Figueiredo)