terça-feira, 28 de maio de 2013

Texto sexto


Houve um tempo em que tudo era diferente. O tempo das nossas existências limpas, em que mergulhávamos nos segredos um do outro, em que dávamos as mãos frente a frente, no aconchego dos nossos olhares derramados.
Nesse tempo tudo era simples, ou nisso acreditávamos. Era o tempo em que acreditar era simples e valia a pena, o tempo em que nos dizíamos em confidências sem escudo, em que éramos atentos à importância de tudo, porque tudo a que dávamos atenção era importante por isso. E fazíamos sentido.
Hoje, não. Olho para ti e tenho de afastar as cortinas opacas das mágoas recalcadas, para entrever esse outro tempo no fundo dos teus olhos com que já não me vês.
Onde é que nos perdemos? Em que ponto do percurso é que os nossos destinos se descruzaram, em que marca do tempo é que deixamos que as nossas existências escorressem da margem de um equilíbrio doce e recetivo para um afundamento no azedume das incompreensões e das críticas?
Não sei. Olho-te nos olhos com que já não me vês e confesso esta minha ignorância misturada de susto e impotência. Porque quero refazer um percurso que não consigo querer refazer suficientemente, por isso resta-me a resignação pesarosa de que carregaremos esta distância até ao fim. E depois.
Houve um tempo em que tudo era diferente. Mas esse tempo não voltará. Nem depois do tempo.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Texto quinto


Calar-se. Olhar para si próprio. Enfrentar o silêncio. Inquietar-se. Ter medo. Pensar. Pensar no que é ter medo. Pensar para não ter medo de ter medo. Penetrar no vulcão das ideias. Queimar-se. Sentir a infernal voragem. Confrontar-se com a imolação de si próprio. Querer fugir. Não ter para onde fugir. Esbarrar contra as próprias paredes. Cair. Sentir o lajedo frio de estar perdido. Mergulhar no abandono. Chorar. Chorar dentro de si. Enraivecer-se. Gritar sem se ouvir. Gritar para não se ouvir. Desejar a surdez. Odiar a própria surdez. Amar o ódio à própria surdez. Resignar-se. Acomodar-se no escuro. Recear a luz. Desejar a luz. Desejar o receio da luz por recear o desejo da luz. Aceitar. Abrir os olhos. Pincelar de luz o invisível. Colorir. Desenhar palavras. Perceber uma saída. Inventar uma saída. Perceber a possível invenção de uma saída. Suspirar de alívio. Desinstalar-se do alívio. Arregaçar as mangas. Predispor-se para o suor. Escrever.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Texto quarto


Paz interior. Aquilo que o escritor não tem. A superação dos dilemas, o equilíbrio das forças em braço de ferro, a reconciliação dos fantasmas eternamente beligerantes, ou a mera constatação de uma possível coexistência pacífica entre eles. Um armistício. Um corredor de luz, uma perpendicular entre as trincheiras, a crença numa variada nudez conciliatória que vença os uniformes inimigos sem porquê.
Paz interior. Aquilo que o escritor não tem. A acalmia nos sobressaltos, a certeza panorâmica de uma respiração regular e constante para lá das neutras apneias da indiferença, para lá da trepidação ofegante das militâncias visionárias.
Paz interior. Aquilo que o escritor não tem. A tranquilidade nutritiva de uma interrogação persistente e fecunda, a resignação curvada de permanecer na dúvida.
A alegria de encontrar a resposta. Aquilo que o escritor não tem. Paz interior.

terça-feira, 7 de maio de 2013