domingo, 30 de junho de 2013

Conversando... sobre "Nós, Vida"

Quando, no processo prévio à publicação, registei o livro Nós, Vida, o formulário que preenchi pedia uma síntese da obra num espaço que não ocupava mais de três linhas. Recordo-me da dificuldade que tive em exprimir em poucas palavras em que consistia o livro e do que tratava. Escrevi então qualquer coisa como: “Ficção narrativa em que, através do relato das vidas cruzadas de personagens comuns, se promove uma reflexão sobre o sentido da vida, o ser humano e o seu destino.”
Mas esta frase, confesso, não me satisfez plenamente.
Solicito, por isso, aos acompanhantes deste blogue e leitores do livro, que partilhem comigo neste espaço a concordância ou discordância relativamente a esta definição. E peço que, a partir das vossas perspetivas de leitores, me ajudem a elaborar uma síntese mais adequada e completa.
Obrigado!

terça-feira, 25 de junho de 2013

Texto oitavo

Noite. Os ponteiros fosforescentes do relógio desenham as três e meia. O silêncio invade o espaço todo que a escuridão embrulha. Como sempre, ele não consegue dormir. Levanta-se da cama, ergue o seu corpo do estrado que protesta a sua insónia num rangido acusatório. Olha brevemente para a tranquilidade, no outro lado da cama. O espesso invólucro da noite mal deixa entrever a beleza dela, derramada entre os lençóis naquele corpo maduro, delicado e provocante, naquele espírito elevado, voluntarioso e sensível. E, dentro dele, há um impasse de ternura no coração sobressaltado.
Afasta-se, sai do quarto. Percorre a casa de olhos bem abertos no escuro, atento à impossibilidade de ver com clareza.
O sofá da sala sufoca um queixume ao sofrer o acolhimento do seu corpo pesado. Ele ali fica, sem pressa, libertando o espírito no tempo que escorre, saboreando lentamente a insónia resignada que é, para ele, a contrapartida noturna de não ser indiferente às coisas, durante o dia.
Não acende a luz. Deixa uma ténue esperança brilhar no escuro ou sonhar com isso: talvez daquela solidão nasça alguma coisa que valha a pena escrever.
Talvez eu queira.

sábado, 22 de junho de 2013

Conversando...

A sessão de apresentação de Nós, Vida, no passado dia 20, deu-me um vislumbre da possível importância da obra: a afirmação física do objeto-livro, a sua inegável elegância estética, a presença multiplicada de amigos, a atenção deles sobre mim como um abraço de olhares. A curiosidade e a expetativa.
Gostaria de captar o eco de tudo isto no interesse tornado leitura, na leitura vertida em opinião, na opinião feita partilha. Este blogue pode também ser um espaço de conversa sobre o livro e tudo o que ele suscita. Nesta época de incessante troca de informações, urge valorizar a literatura como conteúdo enriquecedor da comunicação.
Para quem preferir fazer um comentário mais particular, estarei sempre disponível através do endereço de e-mail alvarocordeiro64@gmail.com.
Obrigado pelo acompanhamento e apoio.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Ficção II - A impaciência da espera

Terminou o jantar simples: uma tigela de sopa aquecida com dois toques no botão do microondas e deglutida em colheradas ritmadas; uma empada de galinha que ficara da visita da velha amiga de infância, durante a tarde; as uvas, vagamente passadas sob a torneira com o desleixo de o-que-não-mata-engorda. Gostava de uvas porque eram frescas e doces e, principalmente, porque não era preciso descascá-las, tarefa inacessível aos seus olhos privados de luz.
Tateou a pilha de pratos no lava-loiças e depositou sobre ela a tigela vazia. Limpou as mãos ao pano mais sujo que elas que pendia de um prego fixo na parede há mais anos do que era capaz de se lembrar e deslocou para a sala o seu corpo desgastado pela osteoporose. Com um suspiro, deixou-se abraçar pela poltrona de todos os serões, encostou a cabeça e fechou os olhos, num gesto que significava o mesmo que tê-los abertos.
Recordou os tempos de outrora, antes da degeneração macular, em que o seu olhar de rapariga independente e culta absorvia toda a luz em redor com despreocupada sofreguidão, vagueava por paisagens e pessoas para mergulhar na profundidade dos livros, onde buscava emoção e dor, paixão e vida dentro da própria vida. Eram tempos de leituras furtivas, clássicos de peso sonegados da estante paterna em tardes de solidão, novelas proibidas disfarçadas noites a fio entre as pregas dos cobertores. E revistas, fotonovelas e poesia.
Agora, essas lembranças emergiam do poço escuro dos seus oitenta e dois anos como lamparinas de revolta, impotentes para romper a espessa cortina dos seus olhos mortos. Num gesto amolecido pela resignação, deslocou o braço para a mesa a seu lado, em movimentos insistentes e cautelosos de sonda, até que os seus dedos enrugados toparam com a maciez das folhas sobrepostas.
Pegou no livro e aconchegou-o no colo, numa carícia de saudade e desgosto. E suspirou repetidamente a impaciência da espera. O tempo demorava o dobro do tempo, naquelas horas em que, na impotência da cegueira, aguardava a chegada do neto que viria ler-lhe mais algumas páginas.

sábado, 15 de junho de 2013

Conversando...

Saudações cordiais.
Quero agradecer a todos os visitantes e seguidores deste blogue. A intenção, ao criá-lo, foi possibilitar um espaço de partilha a partir da escrita e da criação literária, essa forma indireta de olhar para o mundo em que vivemos e que tão diretamente nos diz respeito.
Gosto de escrever e de comunicar por escrito. Por isso, alegram-me os comentários dos leitores. Espero por eles para estabelecer diálogo. Tentarei sempre responder, como até aqui.
Se alguém quiser dirigir-me uma mensagem mais particular, poderá contactar-me por e-mail: alvarocordeiro64@gmail.com. Responderei sempre.
Obrigado por estarem aqui. Sejam bem vindos. Fiquem por cá!

terça-feira, 11 de junho de 2013

Texto sétimo

Ler. Amar a leitura. Amar-se na leitura. Amar o ato de amar na leitura. Amar os outros na leitura. Amar os outros descobertos outros na leitura.
Ler. Preencher-se. Sair do tempo gerador de vazios e projetar-se numa eternidade sinónimo de plenitude. Exilar-se de um espaço tecido de labirintos interrogados e mergulhar num infinito plasmado de mistérios. Fugir da urgência para resolver a necessidade.
Ler. Aceder à revelação. Perceber a insuportável luz do sol filtrada pelo vitral das palavras modeladas. E entender tudo sem ter as respostas.
Ler. Devolver-se ao tempo e ao espaço. Retomar a urgência sem voltar a sentir a pressa. Viver a vida.
Ler. Viver.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Ficção I - O ato inerme e vulnerável

De pé, no cais da estação, a espera. A gabardina azul escura de gola levantada, a camisa roxa por baixo, a banalidade das calças jeans, toda a roupa envergada como uma couraça contra a multidão desconhecida anónima. A multidão indiferente hostil: indiferente na sua hostilidade, hostil porque indiferente.
O silvo, a percussão sucessiva ritmada, o cheiro mecânico da massa metálica em movimento: a aproximação do comboio. A paragem ruidosa da composição, o abrir seco das portas, a entrada. O movimento da gente, continuidade mecânica da deslocação das carruagens.
A busca de um assento, a luta por um assento. A pasta de cabedal em riste como arma de gladiatura naquela arena claustrofóbica. A conquista de um lugar, as pernas fletidas sobre o estofo como um gesto de polegar imperial erguido, a couraça azul escura a tocar o padrão aveludado do encosto num roçagar vitorioso.
Depois, o arranque, o comboio em marcha. A gente toda parada na sua deslocação. A descontração da gabardina, o abrir do fecho da pasta como um gesto de deposição dos ferros da batalha. Surdir o livro lá de dentro como um truque ilusionista, um arabesco de transcendência. E ler. Abstrair-se de tudo, esquecer a imprescindível couraça, ignorar a inevitável indiferença hostilidade, centrar-se no ato inerme e vulnerável. Ler.
O comboio em andamento, a gabardina imóvel, o corpo sentado, o olhar mergulhado, o cérebro aceso, o espírito elevado. A vida toda. Ler.