terça-feira, 20 de agosto de 2013

Texto décimo segundo

A adolescência despontou bizarra dentro dele. Nunca se lhe esbugalharam os olhos diante das formas curvilíneas das raparigas sobre quem, de resto, exercia o curioso fascínio de um aconchego emocional. Elas apreciavam a simplicidade viril do seu cavalheirismo polido, ele dispensava-lhes um modo outro de amizade, feita de consideração e escuta. Revelava-lhes o altruísmo na idade em que ser egoísta é tão natural como as borbulhas no rosto. Amou e quis ser amado, mas só quando descobriu um espírito sublime num corpo recatado de mulher.
A adolescência despontou bizarra dentro dele. Cresceu numa desarmonia de membros, mas expandiu para dentro uma grandeza maior, vislumbrou um mundo interior mais infinito que o universo que aprendia nos bancos da escola. Sem saber que nome lhe dar, chamou alma a essa plenitude. Mas era um termo castrado ainda, porque herdara uma infância de mãos postas e não descobrira ainda o imenso lago filosófico onde haveria de mergulhar depois.
A adolescência despontou bizarra dentro dele. Descobriu-se a olhar sempre para dentro das coisas, dos momentos, dos seres. E não sabia porquê.
Só mais tarde, na sábia distância do tempo e no vislumbre lúcido da memória, percebeu. Recordou os aniversários em que o seu pai o tirava de casa e o soltava nas salas forradas de livros da grande livraria. Ali, varrendo com o olhar as lombadas na possibilidade de escolher o que quisesse – era essa a sua prenda de anos – experimentou inigualáveis êxtases de identidade, desafio, liberdade e sentido. Ali, pela mão do seu pai, descobriu um mundo de fascínio de que soube revestir-se como de um casulo.
Foi nesse casulo que eu nasci. Fui a melhor prenda de anos que o seu pai lhe deu.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Primeira alegoria

Estou aqui.
Há quanto tempo dura a expetativa do encontro?
Diante de mim, uma planície de brancura:
Paz, pureza, soma de tudo.
Impaciência, porque vais aparecer.
O desejo de te ver. A pressa.
E o medo.
O nó na garganta. O garrote dourado.
O medo.
Olho através dele como de grades,
Escorro nas lágrimas uma ansiedade incontida.
O desejo de te ver na pressa de um momento que não quero,
Porque é o princípio do fim.
Calam-se todas as vozes,
Esvazia-se o espaço, desagrega-se o tempo,
Um súbito nada envolve tudo.
E fico só.
Luz.
Luz.
Luz.
Lá estás tu.
Vês-me sem me olhares, no sorriso das tuas mãos atadas.
Abraço-te sem fazer gestos, no sorriso do meu olhar desatado.
A partir de agora, vou viver em ti.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ficção V - Por causa de um livro

A luz vermelha do semáforo escorregou para verde. Num reflexo condicionado, ele engatou a primeira velocidade e pôs o veículo em andamento, sincronização perfeita do movimento projetado do braço direito e do jogo de pés sobre os pedais: alívio do esquerdo fixando o ponto de embraiagem, pressão do direito na aceleração necessária para o arranque.
Era cuidadoso na condução. Porque aprendera na infância o zelo que punha em todas as coisas e porque se sentia permanentemente avaliado pelos clientes que transportava.
“Vi o filme”, chegou-lhe aos ouvidos, por entre o tiquetaque do taxímetro e o revivalismo do rádio que emitia música dos anos setenta, a voz da mulher de meia idade sentada no banco de trás.
Olhou-a pelo retrovisor. Percebeu os seus olhos cerúleos, que fulgiam na pele morena como topázios, poisados no livro que estava entalado entre o travão de mão e o lugar do morto, lombada amarela para cima a desvendar o título: E Tudo o Vento Levou, de Margaret Mitchell, segundo volume da segunda edição portuguesa.
“O filme é o livro amachucado”, respondeu ele, descolorindo o mais que pôde a entoação, “Eu prefiro ler”.
Ela franziu a testa, acentuando o lampejo do olhar que tentava sacudir o preconceito na sua limpidez: nunca vira um motorista de táxi como amante da leitura, mas por que não? Ele pareceu não reparar. Apertou o volante entre as mãos cinquentenárias treinadas para gestos mais criativos, concentrou-se no destino e no percurso para atingi-lo. Ela não resistiu à curiosidade:
“Costuma ler muito, aqui dentro do carro?”, perguntou.
“Gosto de ler”, respondeu ele, procurando manter-se neutro à conversa, “É assim que me entretenho entre dois serviços”.
 Ela sorriu, iluminando todo o rosto com a coloração azul celeste do olhar. Sentia-se já invadida por aquela curiosidade cirúrgica que sempre a dominava perante as pessoas que encontrava no jogo do acaso. E, numa decisão sem retorno, lançou a pergunta:
“Se me permite: porque é que diz que o filme é o livro amachucado?”
Foi a vez de ele sorrir, a resposta colorida de emoção bailando-lhe nos lábios. E seguiu-se a conversa.
O táxi foi atravessando a cidade, cúmplice daqueles dois desconhecidos que se desvendaram um pouco nas ideias e sentimentos. Por causa de um livro.