terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ficção V - Por causa de um livro

A luz vermelha do semáforo escorregou para verde. Num reflexo condicionado, ele engatou a primeira velocidade e pôs o veículo em andamento, sincronização perfeita do movimento projetado do braço direito e do jogo de pés sobre os pedais: alívio do esquerdo fixando o ponto de embraiagem, pressão do direito na aceleração necessária para o arranque.
Era cuidadoso na condução. Porque aprendera na infância o zelo que punha em todas as coisas e porque se sentia permanentemente avaliado pelos clientes que transportava.
“Vi o filme”, chegou-lhe aos ouvidos, por entre o tiquetaque do taxímetro e o revivalismo do rádio que emitia música dos anos setenta, a voz da mulher de meia idade sentada no banco de trás.
Olhou-a pelo retrovisor. Percebeu os seus olhos cerúleos, que fulgiam na pele morena como topázios, poisados no livro que estava entalado entre o travão de mão e o lugar do morto, lombada amarela para cima a desvendar o título: E Tudo o Vento Levou, de Margaret Mitchell, segundo volume da segunda edição portuguesa.
“O filme é o livro amachucado”, respondeu ele, descolorindo o mais que pôde a entoação, “Eu prefiro ler”.
Ela franziu a testa, acentuando o lampejo do olhar que tentava sacudir o preconceito na sua limpidez: nunca vira um motorista de táxi como amante da leitura, mas por que não? Ele pareceu não reparar. Apertou o volante entre as mãos cinquentenárias treinadas para gestos mais criativos, concentrou-se no destino e no percurso para atingi-lo. Ela não resistiu à curiosidade:
“Costuma ler muito, aqui dentro do carro?”, perguntou.
“Gosto de ler”, respondeu ele, procurando manter-se neutro à conversa, “É assim que me entretenho entre dois serviços”.
 Ela sorriu, iluminando todo o rosto com a coloração azul celeste do olhar. Sentia-se já invadida por aquela curiosidade cirúrgica que sempre a dominava perante as pessoas que encontrava no jogo do acaso. E, numa decisão sem retorno, lançou a pergunta:
“Se me permite: porque é que diz que o filme é o livro amachucado?”
Foi a vez de ele sorrir, a resposta colorida de emoção bailando-lhe nos lábios. E seguiu-se a conversa.
O táxi foi atravessando a cidade, cúmplice daqueles dois desconhecidos que se desvendaram um pouco nas ideias e sentimentos. Por causa de um livro.

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