terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ficção VI - Apeteceu-lhe chorar

De olhos baixos, acocorado na sua envergonhada miséria, sentiu o gotejar das moedas na palma da mão estendida. A seguir fechou-a num punho cerrado de impotência e revolta. Só depois ergueu os olhos, a tempo de ver as costas da senhora idosa que se afastava, no passo ligeiro da consciência aliviada.
Apeteceu-lhe chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que protegia ciosamente na mão fechada. De olhos marejados, apertou mais o punho e sentiu, nas pontas dos dedos, o atrito pegajoso incómodo da sujidade que abominava. E recordou um tempo anterior, em que os mesmos dedos, impecavelmente limpos, arrumavam livros nas prateleiras num ritual de reverência e ternura. Ou percorriam levemente as lombadas num fervor especializado, em busca de satisfazer o pedido de mais um cliente.
Esse tempo era agora uma memória, uma saudade amarga e feroz: entristecia-o no orgulho de tê-lo vivido, consumia-o no revivalismo em que o alimentava. A livraria fechara as portas num ato de rendição à competição acelerada de um tempo que a sua quietude não sabia acompanhar. Despejado do seu emprego de toda a vida, ele viu-se, aos quarenta e nove anos, abandonado na esquina do seu mundo arruinado, condenado a recomeçar sem ponto de partida.
Tentou, porque a sua alma resistente negou-se a aceitar o afogamento. Mas a verdade é que o seu corpo já ultrapassara a juventude convencionada para o relançamento de uma vida de produtividade aceitável. E, apesar de teimosamente insistir, após vinte meses de recusas foi obrigado a capitular. E resignou-se a estender a mão, habituada ao toque dos livros, à mendicidade de algumas moedas, compassivamente partilhadas por outros sobreviventes mais afortunados.
Apeteceu-lhe chorar, derramar as lágrimas do seu grito surdo sobre aquelas moedas que protegia ciosamente na mão fechada. Sempre amara os livros e nunca se preocupara com o dinheiro. Agora, no entanto, sabia que aquelas moedas poderiam valer-lhe mais que a livraria inteira do seu passado. Porque lhe garantiriam uma sopa para o jantar que lhe aconchegaria o abandono a que a falência da livraria o condenara.
E chorou. As lágrimas gotejaram sobre o seu punho cerrado sobre as moedas gotejadas. Até que ponto seria ainda capaz de descer?...

3 comentários:

  1. Pela Arte, o que se faz? Até onde somos capazes de "descer"? Os idealistas diriam que até ao fim do mundo, e no entanto muitos se deixam corromper pelas comodidades da vida, muitas vezes disfarçadas (não apenas de pobreza...).

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    1. É bem verdade!...
      Por vezes, em nome do conceito falsamente economicista de produtividade, tendemos a desvalorizar a cultura e a arte, o ócio tal como era entendido na Grécia Antiga.
      Tenho para mim que uma sociedade que valorize o ócio enriquece, ao passo que, obcecada na mira redutora do lucro, fica mais pobre. Porque valor e preço não são a mesma coisa.
      Obrigado pelo seu comentário!

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