terça-feira, 5 de novembro de 2013

Ficção VII - Começou a escrever

Estava só. Olhou em volta, ao redor das quatro paredes, e sentiu o olhar doer-lhe como um choro na noite. Foi à janela, derramou o olhar, quis ver mais longe, encontrar um pouco fora o que dentro lhe sobrava. Mas foi em vão, porque percebeu que não podia pedir ao deserto que se metamorfoseasse em bosque frondoso. Não porque o não fosse, mas apenas porque ele não conseguia vê-lo.
            Fechou os olhos, mas as imagens dele próprio demais continuavam a bailar-lhe dentro como borboletas sinistras. E pouco importava se lhe evocavam o mundo real cujas observações ele colecionava, ou se eram mesmo o reflexo e o prolongamento desse mundo. A verdade é que, dentro dele, existiam muito mais, com muito maior intensidade e era aí que lhe doíam. E era assim que se tornavam uma verdade que não existia lá fora.
            Abriu de novo os olhos, mas já não derramou o olhar. Correu as cortinas, virou as costas ao bosque frondoso que não conseguia ver e recolheu-se, mergulhou no deserto de si próprio em busca de um qualquer oásis de estar ali, que não conhecia. Deitou-se, cerrou o olhar sem se dar conta de ter baixado as pálpebras. Quis dormir, mas o pavor dos pesadelos de ontem retinha-o num lugar de vigília que o martirizava de lembranças. Resignou-se a sonhar acordado, que era o seu irremediável destino. Desejou ser simples, amaldiçoou a sua natural inata complexidade, ou a consciência dela, que é a mesma coisa. Invejou os pobres de espírito, os néscios e os ignorantes, que dormem tranquilos noite após noite, sem culpa nenhuma. Detestou-se por se sentir condenado por todas as vicissitudes que o atropelavam e de que só ele era culpado, porque as percebia.
Sentiu a luta dentro de si, envolveu-se nela um pouco, mais uma vez. Por fim, respirou fundo… e desistiu. Viver é difícil demais, quando se tem tanta vida dentro. Registou mentalmente aquele dia em que abdicava de si próprio, em que renunciava ao seu deserto como se enfim reconhecesse a impossibilidade do oásis, em que assumia viver apenas nos outros. A data da sua morte.
E começou a escrever.

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