sábado, 25 de janeiro de 2014

Texto vigésimo terceiro

Amo-te. Na pessoa que tu és. Na acutilância do olhar, na transparência do sorriso, na pontaria certeira das palavras que nunca deixas por dizer. Na paciência sincera, na caridade intrínseca, no equilíbrio entre firmeza e ternura que te faz implacável perante a injustiça e a miséria. Amo-te no estilo-chão dessa tua simplicidade genuína onde todos os dias revisito a essência de humanidade que busco em mim, porque já encontrei em ti.
Amo-te. Na pessoa em que me apareces. Na frescura amadurecida do teu corpo, esse mar aveludado, meu aconchego, em que a robustez é líquida fragilidade; esse bosque frondoso, meu retiro, onde a beleza selvagem esconde insondáveis mistérios. Amo-te no teu corpo, passageiro habitado por um espírito que ele materializa na proporção direta do ânimo que dele recebe.
Amo-te. Na pessoa em que te dás. Na diligência do teu dia a dia, no pragmatismo das tuas ações, no modo assertivo com que não hesitas. Amo-te nessa frontalidade com que assumes e confrontas, nessa opção fundamental pela verdade que é o teu modo de estar na vida.
Sou-te fiel. Sempre. Não por teimosia, muito menos porque sim. Nem sequer por escrúpulo diante das palavras sacramentais que um dia trocámos. Sou-te fiel porque a fidelidade é a garantia que tenho de poder amar-te sempre mais, mesmo quando menos, mesmo na aridez, no abalo ou no desgaste. Sou-te fiel na esperança de crescer neste amor que me dá sentido por sentir-te, em que me acredito por confiar em ti, em que me quero por querer-te.
Sou-te fiel. No amor e no desamor. Na vida. Todos os dias. E amo-te. Mesmo quando te amo menos por não conseguir amar-te mais. Sempre.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Conversando... sobre Teatro (4)

"O Homem da Flor na Boca": um percurso concluído.
A riqueza da leitura e pesquisa. O prazer escrupuloso do trabalho de dramaturgia. O caudal de inspiração do processo de ensaios, a construção das personagens, a criação artística no rigor técnico. A metamorfose da implantação no espaço cénico, o fascínio da encenação.
E, por fim, a urgente libertação na apresentação ao público. A plenitude e a partilha. As razões do Teatro. O sentido da Arte. O sabor da Vida.
Obrigado!



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Conversando... sobre Teatro (3)

Uma dor na penumbra.
Emoções contidas, amarrotadas no pregueado da roupa. Os braços pendidos em rendição muda, a vida suspensa dos ombros, precária. Lágrimas retidas na gruta dos olhos encovados, uma crispação suplicante no rosto, onde as rugas escrevem angústias caladas.
Tudo acontece por dentro para poder exprimir-se fora. Um sofrimento invocado nas entranhas, ritualizado nas carnes, sacrificado na máscara. A poderosa eloquência de um olhar quase invisível, feito do corpo todo, tingido do sangue que enverga, macerado num tenebrismo sinistro. A angústia concentrada.
O sentimento no Teatro.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio geral de O Homem da Flor na Boca, de Luigi Pirandello. Em cena na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, até 18 de janeiro)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Conversando... sobre Teatro (2)

O corpo, ferramenta de comunicação anterior à palavra. A fluidez biomecânica, o requebro escultórico. Técnica e arte.
Habitar o vazio, preencher a atmosfera. Captar irresistivelmente a atenção, dominar o espaço no movimento, prender o tempo no olhar. O máximo controlo no gesto mínimo, a amplitude da minúcia, a grandeza no pouco.
Desenrolar a ação, soltar a voz. Desaparecer na exposição, silenciar-se na palavra. Apagar-se para ser.
E, ao lado, o grito vermelho. Vida.
A energia do Teatro.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio geral de O Homem da Flor na Boca, de Luigi Pirandello. Em cena na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, até 18 de janeiro)

domingo, 12 de janeiro de 2014

Conversando... sobre Teatro

A figura recortada no fundo negro. A volumetria curvilínea a desenrolar-se no escuro, misto de estética e sedução. O perfil desenhado a luz, a eloquência barroca do chiaroscuro dizendo a perfeição das formas. A pose sobranceira frágil, o olhar dominador escorado na imprevisibilidade, uma altivez feita de medo. O brilho do rosto, a presença do corpo, a irradiação da pessoa, o perfume do ser. A delicadeza prateada do fio, a impercetível riqueza do pendente. O tesouro no pormenor. A eloquência icónica da imagem, a força do texto que é dito.
A beleza do Teatro.

(Fotografia de Jorge Figueiredo, no ensaio geral de O Homem da Flor na Boca, de Luigi Pirandello. Em cena na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, até 18 de janeiro)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Texto vigésimo segundo

De pé, virados para o fundo negro e de costas para tudo, eles conseguiam ouvir o silêncio. Nas respirações cadenciadas, no relaxamento dos corpos, no esvaziamento das mentes. Concentração. Atenção, dentro deles, a tudo o que acontecia fora.
Uma porta abrindo-se, vozes entrando, o mundo exterior derramando-se numa enxurrada de veludo para as cadeiras à espera. E, depois das ondulações, novamente o silêncio, uma tranquilidade orquestrada.
E o tempo implodiu num escuro total. Breves segundos em que eles viveram, cada um no seu íntimo, tudo o que iriam fazer nos três quartos de hora seguintes. A extraordinária capacidade humana de concentrar a duração, de eternizar o instante. De viver intensamente.
Logo a seguir, a luz. O foco, suspenso do teto como uma lanterna mágica. O brilho derramado nas costas deles como um calor aconchegante. E uma força indizível a apoderá-los, a torná-los maiores. Transcendência.
Viram-se uns aos outros sem se olharem. Lentamente, deram meia volta, encararam a luz, enfrentaram a admiração do mundo com a convicção dos frágeis, com a humildade dos vencedores.
Avançaram um passo, unidos numa única respiração. Ele baixou-se, pegou na placa negra. Os outros esperaram.
A peça começou.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Texto vigésimo primeiro

A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). Do amplo terraço do oitavo andar onde morava podia ver-se, acima dos prédios e do gradeado das antenas de televisão, o terceiro anel incompleto do estádio a que sempre ouvira chamar «a catedral». Aos domingos à tarde, a Emissora Nacional ocupava a atmosfera da casa com o relato do jogo do «Glorioso», que era seguido com a emoção de uma causa maior do que a vida. E havia um nome pronunciado com solenidade heróica, mesmo quando se tratava apenas de uma evocação.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). O seu pai, com o honesto rigor que o caracterizava, recordava-lhe a epopeia das duas taças europeias conquistadas em anos sucessivos. E da terceira, perdida entre os ecos do hino comemorativo que já se ensaiava. E recordava também a batalha de Inglaterra, quatro anos depois, em que os portugueses, onde pontificavam vários homens do clube encarnado, mais uma vez assumiram a sina histórica de serem vencidos de cabeça erguida. E havia sempre um nome pronunciado com solenidade heróica.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). A transmissão televisiva era um acontecimento esporádico imperdível, uma exceção nos hábitos de frugalidade mediática do país ensimesmado, um luxo reservado para a intermitente ousadia europeia de uma meia final da Taça dos Campeões ou para a propaganda anual do Jamor, em dia de final da Taça de Portugal. Ainda mais rara foi a possibilidade de observar, no tímido preto e branco do cinescópio da Schaub-Lorenz, o homem a quem correspondia o nome sempre pronunciado com solenidade heróica. A força e tenacidade, a vontade inquebrantável, a eficiência demolidora. A simplicidade de modos, a absoluta despretensão, a alegria verdadeiramente desportiva. O prazer de fazer o que se gosta e o desejo indómito de continuar a fazê-lo.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). Encarnado: para ele, naquele tempo, era essa a cor do Pantera Negra. 

sábado, 4 de janeiro de 2014

Conversando... sobre Luigi Pirandello

O Homem da Flor na Boca, a mais famosa peça em um ato de Luigi Pirandello, é uma poderosa reflexão sobre o ser humano.
Dois homens encontram-se num café, pela noite dentro: um deles aguarda o primeiro comboio da manhã seguinte, para regressar a casa; o outro, apenas espera. Do diálogo entre ambos, primeiro casual, depois incomodativo e, por fim, profundamente perturbador, nasce um retrato da condição humana, das suas fragilidades, da sua (in)consciência. Das frivolidades que se valorizam, do essencial que se ignora. Das preocupações desnecessárias e das ocupações necessárias. Da angústia e do medo. Da morte. E da vida.
O anonimato das personagens aproxima-as de nós de uma forma pouco tranquilizadora. A força do texto provoca-nos inapelavelmente. Mas é preciso deixarmo-nos confrontar, porque somos seres humanos e não devemos passar ao lado da nossa condição.
O Homem da Flor na Boca estará em cena na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, entre 9 e 18 de janeiro, com dramaturgia minha e interpretação do grupo “Flor Na Boca – Projetos”. A não perder!

Para mais informações, aqui fica o link para o evento no Facebook:

E, para aguçar o apetite, mostro algumas fotos de ensaio: