quinta-feira, 27 de março de 2014

Dia Mundial do Teatro

Karl Valentin, de seu verdadeiro nome Valentin Ludwig Fey (1882-1948) foi um comediante, autor e produtor alemão. Pioneiro do Modernismo no teatro, a sua obra, marcada pelo Dadaísmo e pelo Expressionismo de cariz social, proliferou na Alemanha, no contexto de crise do período entre guerras. Atuando essencialmente em cabarés e cervejarias, contribuiu para levar o teatro às camadas populares, num tom provocatório e inovador, desmontando a noção elitista do teatro burguês.
         Exerceu uma influência determinante na conceção do teatro épico de Bertolt Brecht, que com ele trabalhou.
            Neste seu texto (bem atual e, por isso, atualizado nos “valores cambiais”) fica bem patente o seu sentido coletivista da cultura e a sua atitude de desafio ao Estado.

O TEATRO OBRIGATÓRIO
por Karl Valentin

Por que é que os Teatros estão vazios? Pura e simplesmente porque o público não vai lá. De quem é a culpa? Unicamente do Estado. Se cada um de nós se visse obrigado a ir ao Teatro, as coisas mudavam completamente de figura. Por que não instituir o teatro obrigatório? Por que é que se instituiu a escola obrigatória? Porque nenhum aluno iria à escola se a tal não fosse obrigado. É verdade que era mais difícil instituir o teatro obrigatório, mas com boa vontade e sentido do dever, não é facto que tudo se consegue?
E além do mais, não será o teatro uma escola? Então…
O teatro obrigatório podia, ao nível das crianças, iniciar-se com um repertório que apenas incluísse contos como o “Pequeno Polegarzão” ou “O Lobo Mau e as Sete Brancas de Neve”…
Numa grande cidade pode haver – admitamos – cem escolas. Com mil crianças por escola todos os dias, teremos cem mil crianças. Estas cem mil crianças vão de manhã à escola e à tarde ao teatro obrigatório. Preço de entrada por pessoa-criança: cinquenta cêntimos – a expensas do Estado, é claro – dá, cem teatros cada um com mil lugares sentados: 500 euros por teatro, faz portanto 50.000 euros para cem teatros, por cidade.
Quantos actores não arranjavam trabalho! Instituindo, distrito a distrito, o teatro obrigatório, modificava-se por completo a vida económica. Porque não é bem a mesma coisa pensarmos: “Vou ou não vou hoje ao teatro?” ou pensarmos: “Tenho que ir ao teatro!”. O teatro obrigatório levava o cidadão em causa a renunciar voluntariamente a todas as outras estúpidas distracções, às cartas, às discussões políticas na taberna, aos encontros amorosos e a todos esses jogos de sociedade que nos tomam e devoram o tempo todo.
Sabendo que tem de ir ao teatro, o cidadão já não será forçado a optar por um espectáculo, nem a perguntar-se se irá ver o Fausto em vez de outra coisa qualquer – não, assim é obrigado a ir, cause-lhe o teatro horror ou não, trezentas e sessenta e cinco vezes por ano ao teatro. Ir à escola também causa horror ao menino da escola e no entanto ele lá vai porque a escola é obrigatória. Obrigatório! A imposição! Só pela imposição é que hoje se consegue obrigar o nosso público a vir ao teatro. Tentou-se, durante dezenas e dezenas de anos, convencê-lo com boas palavras e está-se a ver o resultado! Truques publicitários para atrair as massas, no género de “A sala está aquecida” ou “É permitido fumar no foyer durante o intervalo” ou ainda “Os estudantes e os militares, desde o general ao soldado raso, pagam meio bilhete”, todas estas astúcias não conseguiram encher os teatros, como estão a ver!
E tudo o que se gasta num teatro com publicidade passará a ser economizado a partir do momento em que o teatro se torne obrigatório. Será porventura necessário pagar publicidade para se mandar as crianças à escola obrigatória?
Como também deixará de haver problemas com o preço dos lugares. Já não dependerá da condição social, mas das fraquezas ou da invalidez dos espectadores.
Da primeira à quinta fila, ficarão os surdos e os míopes!
Da sexta à décima, os hipocondríacos e os neurasténicos!
Da décima à décima quinta, os doentes da pele e os doentes da alma.
E os camarotes, frisas e galerias serão reservados aos reumáticos e aos asmáticos.
Tomemos por exemplo uma cidade como Munique: descontando os recém-nascidos, das crianças com menos de oito anos, dos velhos e entrevados, podemos contar com cerca de dois milhões de pessoas submetidas ao teatro obrigatório, o que é um número bastante superior ao que o teatro facultativo nos oferece.
Ensinou-nos a experiência que não é aconselhável que os bombeiros sejam voluntários e por isso se constituiu um corpo de bombeiros. Por que razão o que se aplica aos bombeiros não se aplicará também ao teatro? Existe uma íntima relação entre os bombeiros e o teatro. Eu que ando pelos bastidores dos teatros há tantos anos, nunca montei nem vi uma só peça que não tivesse um bombeiro presente na sala.
O T.O.U., Teatro Obrigatório Universal, que propomos, chamará ao teatro numa cidade como Munique, cerca de dois milhões de espectadores. É pois necessário que, numa cidade como Munique, haja: ou vinte teatros de cem mil lugares, ou quarenta salas de cinquenta mil lugares, ou cento e sessenta salas de doze mil e quinhentos lugares, ou trezentas salas de seis mil duzentos e cinquenta lugares, ou seiscentas e quarenta salas de três mil cento e vinte cinco lugares ou dois milhões de teatros de um único lugar.
É preciso que cada um trabalhe no Teatro para se dar conta da força que daí nos pode advir, quando o ambiente de uma sala à cunha, com o público de – digamos – cinquenta mil pessoas nos arrebata!
Aqui tendes o verdadeiro meio de ajudar os teatros que estão pelas ruas da amargura. Não se trata de distribuir bilhetes à borla.
Não, há que impor o teatro obrigatório! Ora quem poderá impor senão… o ESTADO.


sábado, 22 de março de 2014

Texto vigésimo quinto

Sou um escritor de silêncios.
Observo a realidade, absorvo o mundo no olhar. Abro os braços numa pergunta sem filtro, acolho todas as cores das reticências que percebo. Delicio-me e enojo-me, deixo-me preencher de êxtase e de náusea. Sempre calado, porque não me chega voz em que possa existir fora deste fundo poço de interrogação quieta.
E algo por dentro cresce, é uma quietude feroz que se apodera. Até que há dias em que o silêncio grita mais alto. Extravaso então as ressonâncias de tudo, verto no papel inocente as alegrias e as raivas, as mágoas e as serenidades, as provocações e as angústias. E permaneço calado, alimento a interrogação ao esvaziá-la no derrame das palavras escritas, dou-a a saborear ao papel inocente, por mim tornado cúmplice do meu silêncio. Dou-a a saborear a mim próprio e – se alguns houver – a quantos quiserem lê-la. Em silêncio.
Uma escrita calada, eis a minha voz. Mais que um grito de militância, um apelo à troca. Mais que um desafio à reflexão, um convite à cumplicidade. À degustação do olhar, de onde tudo parte. Ao mergulho na interrogação, onde tudo se adensa. À procura. Sem portões gradeados de receios, fechaduras de certezas ou ferrolhos de sentenças. Ao encontro. No silêncio.
Sou um escritor de silêncios.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Conversando... sobre os Festivais (3)

Em 1980, o Quarteto Música em Si assumia a sua participação no Festival RTP da Canção como uma possibilidade de experimentação, a proposta de uma canção diferente. De certo modo, ao tempo, uma inovação estética.

A canção "Esta Página em Branco" obteve o 6º lugar (a vitória coube a José Cid, com "Um Grande, Grande Amor") mas, quanto a mim, ocupa um posto de destaque na história dos Festivais. Há uma conjugação arrepiante entre a crueza da letra de Gustavo Sequeira e a música direta, quase áspera de António Branco. A orquestração soberba de José Mário Branco, com tudo no sítio certo, é a chave da consistência desta obra.



segunda-feira, 17 de março de 2014

Conversando... sobre os Festivais (2)

Recordo aqui um tempo em que concorrer ao Festival RTP da Canção não era uma tentativa de fabricar uma suposta canção de sucesso, na expectativa (inútil miragem!...) de vencer ou obter uma boa classificação no Eurofestival.

Nesses anos, concorrer ao Festival RTP da Canção era uma oportunidade de enriquecer o património musical português com criações inspiradas e laboriosas. Pegando na História que nos dizia. Em busca de uma originalidade que nos refizesse.

"Os Lobos e Ninguém" ficou em 5º lugar no Festival RTP de 1976. Num ano em que todas as canções finalistas eram excelentes, esta, composta e escrita por José Luís Tinoco, é um objeto artístico sublime: a força e coragem da música, sem medo de não ser "festivaleira" (o que é isso, afinal?...); a elaboração e profundidade da letra, exorcizando o nosso passado recente com uma raiva libertadora.

E a interpretação de Carlos do Carmo, meu Deus! Quando voltaremos a ter um Festival a este nível?...



domingo, 16 de março de 2014

Conversando... sobre os Festivais

É sobejamente conhecida.

Venceu o Festival da RTP em 1996 e obteve a melhor classificação de sempre para Portugal, na Eurovisão.

Mas vale a pena recordar esta magnífica canção, testemunha de uma elevação artística nestes tempos em que parecemos satisfazer-nos com a mediocridade.

Vale a pena apreciar o talento de composição de Pedro Osório, a inspiração da letra de José Fanha e o virtuosismo gracioso da interpretação de Lúcia Moniz. Porque só com investimento e qualidade nestas três dimensões é possível chegar a uma canção verdadeiramente digna.

Sem dúvida, "O Meu Coração Não Tem Cor" é uma referência dos Festivais de música portuguesa, precisamente porque faz referência ao festival que é a Música Portuguesa!



sexta-feira, 14 de março de 2014

Dizer a Imagem 2: Chumbo


Virá o dia em que serei capaz de erguer os olhos dos pés fincados no quadriculado dos dias mornos. Nesse dia, as pálpebras semicerradas ao vento frio e quente, hálito múltiplo dos sonhos de que sempre fugi, hão de deixar-me perceber as sandálias de Hermes que nunca ousei acreditar, porque o conformismo magnético das solas de chumbo sempre me atraiu o olhar para a terra firme da cobardia padronizada.
Virá o dia em que serei capaz de gritar a revolta do peão indignado com as regras do xadrez obsceno. Nesse dia farei tremer a terra com um simples passo, um avanço subversivamente oblíquo, captura en passant de todas as inércias que me querem parado.
Virá o dia em que acontecerá a libertação sonhada. Até lá, curvo o olhar para o chão quadriculado, desalinho os pés numa ilusão de avanço, arrasto o chumbo numa esperança de asas. Retenho em mim esta imagem de um sonho que faço existir em palavras.
E morro mais um dia.

(Fotografia de Jorge Figueiredo)

sábado, 8 de março de 2014

Ficção IX - Bebida de adultos

Estava sentada diante do tampo frio da mesa. Olhou a chávena de café imóvel, a teimosia de uma fumaça ténue tentando contradizer o ambiente gélido. Segurou-a com as duas mãos, abraçou-a com os dedos devorados pelo ardor das frieiras de um inverno impiedoso. O calor da chávena acentuou-lhe a sensação raspada e cortante na pele, aquele sofrimento que ela desejava, na ânsia de esquecer outro maior.
A solidão.
Poisou a chávena. Olhou o pacote de açúcar repousado no pires, sete gramas de doçura destinados a mitigar o amargo daquela bebida quente, estimulante, apaziguadora. De quantos sete gramas precisaria para suavizar a amargura do seu coração perdido, retraçado na separação bruta, estilhaçado no esgar de troça da inqualificável despedida?
“Vê se cresces!...”
Olhou em frente, para a cadeira vazia. Vazia do corpo que a seduzira, vazia do sorriso que a cativara, vazia da voz que a envolvera no embrulho do seu canto antes de lhe rasgar as ilusões com o gume do desprezível sarcasmo:
“Achavas que eu me ia agarrar a ti para toda a vida? Vê se cresces!...”
Olhou em frente, para o vazio da vida à sua frente, para o vazio de si própria. E deixou-se ficar, na espera de quem não espera por nada.
A solidão.
De novo pegou na chávena. Bebeu o café, já morno como uma lembrança vaga, como uma recordação diluída, não a dela. Bebeu-o amargo, rejeitou a hipocrisia de sete gramas de doçura, a miragem de que é possível condimentar a angústia a ponto de torná-la apetecível.
“Vê se cresces!...”
Engoliu o negrume da insuportável troça daquelas palavras roucas que não se descolavam da sua mente, do seu olhar vazio, da pele dos seus dedos chagados. Sentiu-se queimar por dentro pelo lume daquele vazio que lhe corria nas entranhas. Porque era verdade: simplicidade, confiança e entrega são infantilidades que não constam do manual de sobrevivência da cidade dos homens crescidos. Onde o amor é um bem que se consome e desgasta. Onde o ser amado é uma ferramenta utilitária e descartável.
“Vê se cresces!...”
A solidão.
Ergueu o olhar, levantou a mão, esticou o dedo devorado pelo ardor das frieiras de um inverno impiedoso. E pediu outro café, que é bebida de adultos. Com açúcar.

sábado, 1 de março de 2014

Conversando... após a Tertúlia


Agradeço à Editora Livros de Ontem e ao Café 100 Artes a excelente organização deste evento. E também a todos os que tiveram oportunidade de participar. A 2ª edição da Tertúlia Lisboa foi um momento de partilha muito enriquecedor para todos. 
Com efeito, quem escreve precisa de conhecer o modo ser e de sentir de quem o lê. Do mesmo modo, quem lê gosta de saber o que faz vibrar a pessoa que produz a escrita que é lida.
Nesta tertúlia todos revelamos um pouco de nós mesmos, a propósito dos "textos que nos fizeram". Penso que valeu muito a pena!
Partilho aqui o texto com o qual abri a conversa: um poema de Miguel Torga que recordo como um dos primeiros escritos que aprendi, li e decorei, no longínquo primeiro ano da então chamada instrução primária. Foi a partir de textos como este que, desde a infância, fui descobrindo o prazer da leitura, o Belo que na escrita se exprime e a transcendência que lhe é inerente.

BRINQUEDO

Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.