sábado, 25 de outubro de 2014

Texto trigésimo

Nos primeiros anos percorreu o caminho de ida e volta de casa para a escola pela mão da mãe, que ia ficando mais pequena à medida que a sua crescia, sem que isso diminuísse o vigor com que a mão maior segurava a mais frágil e sem que se alterasse a relação de forças com que a mãe o dominava. Foi talvez na quarta classe, ou perto do final da terceira, que ele foi autorizado a regressar sozinho a casa no final do dia. De manhã, o acompanhamento da mãe no percurso de ida era, mais do que uma certificação da pontualidade dele, uma tranquilidade para os nunca exteriorizados receios dela.
A mãe nunca deixou de sofrer por ele, de se sobressaltar na contínua imaginação, que ela tinha como premonição segura, de todas as possíveis fatalidades que nunca ocorreram. Sempre ocultou todos os sustos no ênfase de controlo de tudo que alardeava e, por isso, ele sempre descansou na descontração dela em que piamente acreditava. Nunca supôs que ela dissimulasse qualquer espécie de medo. Nunca duvidou de que a pressão que ela exercia sobre ele fosse outra coisa para além de uma desconfiança quanto ao seu cumprimento. E terá nascido nessa altura a ideia, que ele desenvolveu ao longo dos anos, de que ela lhe reconhecia uma fragilidade de caráter que fazia com que não gostasse dele.
— Quando acabar a escola, voltas imediatamente para casa – dizia ela, invariavelmente, no seu tom controlador, cujo asserto o manietava. – Ai de ti que te demores em algum lado!...
Assim, o caminho para casa era sempre apressado, o que lhe impedia a observação, a descoberta e o desvio que sempre moldam os anos de infância a caminho da adolescência. Ele nunca se desviou, porque sabia que a sua mãe não queria. E, para ele, nada era mais importante.
Saía da escola e atravessava a avenida, numa linha perpendicular à porta em arco que, a determinada altura, foi pintada de verde. Depois, sempre pelo passeio e com extremo cuidado, se era inverno, para se desviar das poças de água que poderiam encharcar-lhe as botas, único calçado de que dispunha para todo o ano letivo, descia até ao entroncamento da estrada. Aí havia uma papelaria, onde, anos mais tarde, passaria a vir quase diariamente. Contornava-a e continuava a seguir pelo passeio agora largo, cruzando-se com mulheres da idade da sua mãe que, domésticas como ela, percorriam aquela zona às compras ou passando o tempo. Também se cruzava com rapazes e raparigas mais velhos, que se moviam em grupos com uma descontração que o perturbava. Depois de passar a padaria, uma das lojas onde mais tarde seria conhecido pelo nome, avistava já as arcadas dos prédios onde morava. Depois do maior café do bairro, em cuja esplanada várias pessoas, homens e principalmente mulheres, ostentando uma condição social pretensamente superior que estavam convencidas de possuir, prolongavam a tarde ao sabor de chá e torradas, havia uma sapataria cujo dono era amigo de infância da sua mãe e tinha um nome bíblico que ele só quarenta anos mais tarde voltou a encontrar em alguém. A seguir, o supermercado a que a sua mãe amiúde recorria para solucionar qualquer súbita falha detetada na despensa, dizia-lhe que tinha chegado. O supermercado era a loja do prédio onde morava, no último andar que se abria em vista panorâmica sobre o bairro.
Quando tocava à campainha, respirava de alívio: não se tinha desviado nem atrasado, a sua mãe ficaria satisfeita.

sábado, 18 de outubro de 2014

Teatro: «O Evangelho segundo Pilatos»

«Sempre preferi adensar os mistérios a resolvê-los. […] Um mistério, desde que obtém uma solução, deixa de o ser, pois não nos oferece mais nada para pensar.»
Este excerto que transcrevo do texto de Éric-Emmanuel Schmitt incluído na folha de sala do espetáculo O Evangelho segundo Pilatos atualmente em cena no Teatro da Comuna, exprime bem o sentido da obra literária e dramática deste extraordinário autor. Ao mesmo tempo, revela a principal razão pela qual a mesma me fascina.
Quando li O Evangelho segundo Pilatos, há uns anos atrás e na sua forma original de romance, fiquei imediatamente rendido. Não só pelo facto de abordar um tema que me apaixona enquanto ser humano e amante de História (a controvérsia sobre a figura histórica de Jesus de Nazaré, a sua vida e as peripécias da sua morte, a crença na sua ressurreição e a eclosão do Cristianismo), mas também – e sobretudo – pela audaciosa profundidade da sua abordagem e pela inteligência provocadora com que deixa tudo em aberto. Éric-Emmanuel Schmitt, que vem da Filosofia para as Letras, não escreveu o livro para partilhar a sua resposta, mas para semear a interrogação no íntimo de cada leitor. De facto, questionar a figura de Jesus e a realidade do Cristianismo, pôr a si próprio o problema da Incarnação e da Ressurreição é, quanto a mim, refletir sobre coisas essenciais do mistério do ser humano: expectativa, sonho, medo, destino, sacrifício, festa. Vida e morte (e Vida outra vez?...). Por experiência afirmo que é um caminho que mais e mais nos aproxima de nós mesmos.
O próprio Éric-Emmanuel Schmitt, exímio dramaturgo, adaptou o romance para teatro. É essa versão que temos agora a oportunidade (absolutamente imperdível!) de ver, até 23 de novembro, no Teatro da Comuna.
Neste espetáculo, a brutal urgência do texto é acentuada pela frugalidade da encenação e pela verdade corajosa do trabalho dos atores (pontuada por momentos brilhantes). Tudo ao serviço do texto. Tudo para que fiquemos sós diante das palavras ditas, que nos envolvem como o vento do deserto judaico cerca Pilatos nas dúvidas que o tornam refém de uma interrogação profunda que em nós se prolonga.
O Evangelho segundo Pilatos, no Teatro da Comuna. Um mistério a não perder!