domingo, 22 de fevereiro de 2015

Décima primeira alegoria

Transfiguração
O teu olhar
Negro como a roupa em que te despes
Habitado por aquela que não és tu
senão aqui
para mim
para nós

Transfiguração
O jeito de te moveres
A fala do teu corpo
a provocação
A dor saborosa que me infliges
neste jogo de sedução e troça

Transfiguração
A tua voz
Lábios moldando palavras vindas de dentro
nascidas noutro lugar
Tão tuas
Tão próprias daquela que não és tu
senão aqui
para mim
para nós

Transfiguração
Outra vida exposta neste segredo
na demolição das palavras
no delírio das emoções
no mergulho dos corpos
na distância de um beijo
A catarse
 
Transfiguração

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Texto trigésimo nono

Todas as vezes que escrevo, é um outro que me escreve. Não sei se o liberto no ato de escrever, se apenas o constranjo a debater a sua ânsia de liberdade na escrita em que choca debalde contra as paredes de mim, forradas por dentro de inconsequência.
Sou uma ausência de ser, quando escrevo, uma possibilidade não concretizável, um desejo sem coragem. Ele, em mim, é nesses momentos a presença de não-ser, a impossibilidade concretizada, a coragem que não deseja.
Libertamo-nos ambos na força com que estamos irremediavelmente presos um ao outro. Prendemo-nos mutuamente neste ato da escrita que descontroladamente nos liberta.
Somos dois no um-só em que existimos.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Décima alegoria

Meu amigo das noites do meu dia-a-dia
Meu companheiro que aprecio tanto
Ouve o som das palavras desta melodia
Que ela te anime e te arrefeça o pranto
São meras palavras, é fumo a pairar
Vago como ondas do mar
Mas o vento sopra no teu dia-a-dia
Que ele te leve fumos de alegria

Se a frieza da noite te emudece a alma
Sentes-te só no crepitar da gente
Se o deserto do medo te destrói a calma
É porque vives sob o sol poente
São meras palavras que eu tenho p’ra dar
Ténues como a cor do ar
Mas a vida pulsa no coração da gente
Que ela te leve até ao sol nascente

O orvalho é pregão que anuncia a manhã
Terna e pura como lã
E mesmo que a noite roube a tua alegria
Nunca adormeças ao raiar do dia