domingo, 29 de março de 2015

O Poder e o Desejo (4)




«Posso chegar a um espaço vazio qualquer e fazer dele um espaço de cena. Uma pessoa atravessa esse espaço vazio enquanto outra pessoa observa – e nada mais é necessário para que ocorra uma ação teatral».

Estas palavras de Peter Brook estiveram na base do conceito de escrita de O Poder e o Desejo: o texto, carregado nas palavras e espartilhado na forma clássica da tragédia, aligeirou-se nas referências de implantação no espaço cénico.

Inspirada por essa sugestão, a encenação original afastou-se deliberadamente de padrões visuais historicistas: esvaziada a cenografia e despidas as personagens de quaisquer marcas de época ou caráter, ficaram apenas os corpos dos atores nas suas roupas essenciais de trabalho, partilhando um chão comum com os espetadores. Se Peter Brook deu o mote para a escrita, o teatro pobre de Grotowski inspirou a encenação.

A intenção de todo este minimalismo foi criar um espetáculo que coubesse numa mala de viagem, para que pudesse ser levado a qualquer sítio, preencher qualquer espaço vazio. Para que os ecos da Palavra que ele procura transmitir pudessem ressoar mais longe, para que a partilha de reflexões e sentimentos que ele tenta suscitar pudesse alcançar mais fundo. E porque o teatro, no seu estado mais «bruto» (outra vez segundo Peter Brook), pode acontecer em qualquer tempo e lugar.

Justificada por tudo isto, a oportunidade de apresentar O Poder e o Desejo na capela do Externato Marista de Lisboa inscreve-se ainda, porque se trata de uma história inspirada num episódio bíblico, no retomar de uma tradição ancestral da cultura europeia: a representação de «Mistérios», dramatizações de narrativas extraídas da Bíblia que tinham lugar nos adros das igrejas ou, frequentemente, no seu interior.

Evidentemente, a intenção eminentemente catequética ou moralizante dos Mistérios medievais dá aqui lugar a uma dimensão mais interpelativa e provocatória, centrada nas palavras e nas emoções que delas brotam. E inscrita numa estética de tragédia clássica que o texto ensaia, que a encenação procura e que o espaço agora escolhido evoca talvez melhor do que qualquer outro.

De toda a depuração formal sairão reforçados – assim o esperamos – os sentimentos assumidos pelos atores nas personagens que interpretam. Pois, se Peter Brook deu o mote para a escrita e o teatro pobre de Grotowski inspirou a encenação, é sempre Stanislavski que espreita por detrás do trabalho de criação dos papéis.

Por tudo isto, a reposição de O Poder e o Desejo, nos dias 9, 10 e 11 de abril, na capela do Externato Marista de Lisboa, é uma ocasião única e imperdível. Talvez a última.

sábado, 21 de março de 2015

O Poder e o Desejo (3)

De novo o mergulho no mistério da fragilidade humana. Das interrogações que nos movem, mesmo quando nos impedem de avançar. Ou da fuga delas, que é outro modo de assumi-las. Mais fraco, talvez, porém não menos humano. O mistério da fragilidade humana.
De novo a partilha da tragédia humana. A busca, a contradição, o desequilíbrio entre a ambição e o desprendimento, a cedência ao capricho em confronto com a firme resistência aos desvios, a entrega à própria verdade ou a negação dela.
De novo o grito de transcendência. A ânsia de provocar, de sacudir a própria letargia, de apelar ao mais que somos neste menos a que tantas vezes nos reduzimos. Por inércia? Por desiludido cansaço? Por não sabermos porquê?... O mistério da fragilidade humana. A tragédia.
De novo a oportunidade de viver em conjunto um tempo de humanidade. E de diferença. Despojados de artifícios, reduzidos em tecnologias, assumidos numa simplicidade honesta. Pessoas diante de pessoas. E um texto. Palavras que se escutam em quem diz. Palavras que se dizem em quem escuta. A Palavra. O grito de transcendência.
De novo a Palavra.
Teatro. O Poder e o Desejo. Em abril, dias 9, 10 e 11. Na capela do Externato Marista de Lisboa. Uma ocasião imperdível!
 

domingo, 15 de março de 2015

Texto quadragésimo


Precisamos da provocação da arte, essa ferramenta espiritual de olhar todas as coisas de outra maneira. Que nos desarma, por isso nos fortalece. Fragiliza-nos no modo como nos desnuda ao encontro da nossa essência. Assusta-nos por isso. E fascina-nos.

Porém, fugimos da provocação da arte, da qual precisamos. O frémito quotidiano, mera luta de sobrevivência, inibe-nos. Debatemo-nos na ânsia de permanecer à tona e, assim, perdemos o gozo do mergulho existencial nos nossos medos, que afinal nos salvarão. Afligimo-nos mais nos desejos de alívio, deixamo-nos prender por objetos de pretensa libertação. Não sonhamos, iludidos por falsos ideais de vigilância. A superficialidade encobre a profundeza, o imediato mascara o eterno. A arte sobra nas urgências da vida, falta às angústias.

Entretanto, evadimo-nos (ou enganamo-nos de nos evadirmos): programamos fins-de-semana «diferentes», projetamos férias «exóticas», compensamo-nos por sonharmos paraísos proporcionais à nossa impossibilidade deles. São intenções de fuga já resignadas de regresso. Abrimos vagamente o postigo à utopia que nos habita, porém negamos-lhe o espaço para que verdadeiramente nos ocupe. E buscamos teimosamente respostas no nosso dia-a-dia atribulado, virando costas ao mistério pessoal que nos interroga e dá sentido por isso.

Mas existe a arte. As artes todas. A literatura também. E a religião, talvez. E o amor, sempre. As ferramentas do espírito (com a cumplicidade do corpo). Algo que confira à nossa vida um certo sentido de tragédia. De inexorabilidade que desafia. De decisão que urge. De constrangimento que nos leva à superação. De compromisso até ao martírio. De vida na própria morte. De salvação.

Precisamos.

domingo, 1 de março de 2015

Dizer a Imagem 8: Mais nada

 
Um corpo agarrado ao pó da terra, colado pelos membros às tábuas outrora árvores, ao artifício antes natureza. E a treva.
Um olhar que se eleva, arregalado na mão estendida, gesto que se desprende da carne num sonho de transcendência. E a luz.
Há uma luz vinda do alto, que desenha este corpo na treva que o abraça. Um recorte de esperança num mergulho de aflições. A existência. E mais nada.
E recorda-se Caravaggio, o tenebrismo da vida, a luz rasante do sonho. A existência contada no malabarismo da arte. A arte.
Fotografia. A arte.
E mais nada.
 
(Fotografia de Jorge Figueiredo, na apresentação de O Poder e o Desejo)