domingo, 28 de junho de 2015

Texto quadragésimo quinto

Porque é porventura a obra mais bem escrita da literatura portuguesa. Porque é decerto uma das mais profundas. Penetra no quotidiano de um homem para analisar a humanidade inteira no que tem de transcendente e vil.
Porque é uma prosa reveladora. E porque é certeira. Expõe, na dolorosa precisão de cada palavra, a contraditória essência da nossa condição de gente.
Porque é um livro feito do próprio paradoxo que retrata. Porque se assume desestruturado numa busca que lhe confere a consistência maior que o constitui. Sublime na sua fragilidade, é um livro grandioso na exposição da pequenez humana, simples na denúncia da sua complexidade.
Por tudo isto, o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, é uma das minhas obras preferidas, ocupa o pódio dos três melhores livros que já li. Que releio continuamente.

domingo, 14 de junho de 2015

Ficção XI - Reinscrever-me no tempo

Quereria reinscrever-me no tempo para recordar os dias em que o meu coração fervia em ânsias de martírio. Não fosse a doença que me acometeu ao chegar a Marrocos e por lá me quedaria, decerto morrendo às mãos do Islão, na prática assumida de anunciar o meu credo. Ao infundir-me uma moléstia que não desejei, foi o próprio Senhor a quem sempre me entreguei que me sonegou às mãos do destino que eu buscava, mais certo Ele do valor da minha vida que ciente eu próprio do sentido que pretendia dar-lhe.
No suposto regresso convalescente à terra lusitana onde nasci, novo transe – traição da natureza criada ou lealdade do Criador da natureza – me desviou: as peripécias de uma tormenta marítima desaguaram-me na Sicília e, como levado por imprevisível onda, transportaram-me a Assis e fizeram-me presente ao Capítulo da Ordem dos Frades Menores que abracei por inspiração daqueles pregadores que conheci em vida antes de rumarem ao norte de África e invejei na morte mártir que lá acharam.
Em Assis conheci o Irmão Fundador, que encontrei rodeado dos seus discípulos de origem. Sempre foi dito que ele profundamente se admirou da minha pessoa, mas essas versões da minha história mais não são que máscaras de lisonja ocultando o genuíno espanto que eu próprio senti perante os abismos de santidade que irradiavam de todos os membros daquela comunidade, e de Francisco mais que de qualquer outro. Acreditei, ali mais que nunca, que Deus é um abismo de luz que se alcança penetrando o nosso próprio íntimo, num mergulho que é feito dos gestos com que se assiste e alivia a pobreza alheia. A isso devotei a vida, cuidando que o meu saber acumulado – o trivium e o quadrivium aprendidos em Santa Maria Maior de Lisboa e aperfeiçoados em Santa Cruz de Coimbra – eram armas inúteis nesse processo, mais valendo sepultá-las no silêncio da meditação fecunda do que alardeá-las num exibicionismo estéril.
Na verdade, nunca fui acertado juiz de meus méritos, pois foi precisamente a minha erudição, em conjunto com a eloquência que dela brotava, que melhor me permitiram servir a Ordem, a Igreja, a humanidade e, em suma, o próprio Deus por quem sempre vivi. O tempo dos meus dias terminou em Pádua, sem que tenha tornado a ver a terra onde nasci e da qual mais tarde me fizeram patrono, consequência de ter sido canonizado (com uma brevidade que me deixa perplexo) e reconhecido como taumaturgo (com uma distinção que me esmaga a simplicidade).
Quereria reinscrever-me no tempo para, na eloquência que me atribuem, recordar aos homens os dias da minha vida e o que de mais importante deles ficou. Não esse mero folclore de santo casamenteiro, não apenas essa invocação chã do meu nome entre acordes de marcha popular, rimas de manjerico e cheiro a sardinha assada. Quereria reformular-me na imagem nítida das práticas disciplinadas da oração e do estudo – as virtudes que verdadeiramente me tornaram justo diante de Deus e valioso para os homens – em vez de continuar embaciado na velatura opaca dos prosaicos milagres que me atribuem e que fazem esquecer que, associado à graça divina, é o mérito de cada um que pode elevá-lo, não a complacência ou simpatia por narrativas mágicas da vida de qualquer outro.
Quereria reinscrever-me no tempo para aproximar-me dos homens que são como eu fui. Porém é condição dos santos – mesmo de um santo popular como eu – permanecerem encarcerados na sua seráfica beatitude, a uma eternidade de distância…

terça-feira, 9 de junho de 2015

Texto quadragésimo quarto

Porque olhar-te é gritar o amor que as palavras falham, ocas demais para a grandeza de que são mensageiras. Não há invólucro que possa forrar o ilimitado, nem atilho que prenda o eterno num embrulho de tempo.
Porque ser olhado por ti é sucumbir ao derrame da insuportável verdade. O imenso fulgor da tua essencial beleza queima a fraqueza dos meus olhos pedintes, jorra-me em lágrimas de um gozo cego da luz de ti.
Porque acordar ao teu lado é um sobressalto de paz indizível. É saborosa demais esta identidade de casulo do segredo das respirações só nossas, do entrelaçamento dos odores indisfarçados, da epidérmica colagem das emoções trazidas do íntimo.
Porque adormecer contigo é ressurreição em vida. Há um consolo de subsistência no longo prazer fugaz de largar as pressas e tensões que me esfaimam em morte quotidiana prolongada, há um mergulho de eternidade no prolongado instante de relaxamento sem medida em que se transcende a banal existência enterrada no seu peso numa leveza que a ressurge para um sentido maior. Talvez único.
Porque és tu.