domingo, 26 de julho de 2015

Texto quadragésimo sexto

De repente, a recordação. O retorno a um cálido passado, a uma infância embalada na simplicidade e emparedada no rigor. A voz do meu pai recitando um poema francês que aprendera na escola, talvez na infância dele que transportava então para a minha, tal como a memória de adulto agora me conduz a esse momento e, pela memória adulta dele, me projeta num tempo anterior. As memórias, e as pessoas que elas contêm, fazem-nos viajar para longe, rompem as fronteiras da nossa existência. As pessoas, e as memórias que elas contêm, dão-nos outra dimensão. Imortalidade.
De repente, a recordação. A voz do meu pai recitando um poema francês, imortal como a lembrança dele, poderoso nas palavras e no seu significado: a humildade contra a soberba, o confronto e a resistência. Sobrevivência do mais fraco, paradoxo da natureza. Imortalidade.
É um poema de La Fontaine, genial como quase todos: beleza das palavras, riqueza das imagens, grandeza das ideias. Recupero-o aqui:

Le Chêne et le Roseau
Le Chêne un jour dit au Roseau:
“Vous avez bien sujet d’accuser la Nature;
Un Roitelet pour vous est un pesant fardeau.
Le moindre vent, qui d’aventure
Fait rider la face de l’eau,
Vous oblige à baisser la tête:
Cependant que mon front, au Caucase pareil,
Non content d’arrêter les rayons du soleil,
Brave l’effort de la tempête.
Tout vous est Aquilon, tout me semble Zéphyr.
Encor si vous naissiez à l’abri du feuillage
Dont je couvre le voisinage,
Vous n’auriez pas tant à souffrir:
Je vous défendrais de l’orage;
Mais vous naissez le plus souvent
Sur les humides bords des Royaumes du vent.
La nature envers vous me semble bien injuste.

– Votre compassion, lui répondit l’Arbuste,
Part d’un bon naturel; mais quittez ce souci.
Les vents me sont moins qu’à vous redoutables.
Je plie, et ne romps pas. Vous avez jusqu’ici
Contre leurs coups épouvantables
Résisté sans courber le dos;
Mais attendons la fin.” Comme il disait ces mots,
Du bout de l’horizon accourt avec furie
Le plus terrible des enfants
Que le Nord eût portés jusque-là dans ses flancs.
L’Arbre tient bon ; le Roseau plie.
Le vent redouble ses efforts,
Et fait si bien qu’il déracine
Celui de qui la tête au Ciel était voisine
Et dont les pieds touchaient à l’Empire des Morts.

domingo, 12 de julho de 2015

Ficção XII - Última sessão

Olhou-se ao espelho e sorriu. Sob a luz rasante matinal que a exígua janela quadrada emprestava à casa de banho, o seu rosto era o mesmo. Mais cavado das rugas do tempo, mais maduro das dores da sobrevivência, era o mesmo rosto de vida, a mesma expressão de luta. E de vitória.
Olhou-se ao espelho e sorriu. O cabelo acastanhado que outrora lhe escorria sobre os ombros em ondas vaidosas suaves, desenhava-se agora discreto e curvilíneo, rasteiro ao couro cabeludo num despenteado ralo que já fora medo e vergonha para se tornar alívio. E esperança.
Baixou os olhos lentamente. Contemplou o corpo magro, vencida já a rejeição de não ser capaz de olhá-lo, debilitado pela angústia, fortalecido na resistência. E na luta: os ombros erguidos, o desenho enérgico e atraente dos braços. E o peito.
Houve uma comoção, uma espécie de estremecimento marejado nos seus olhos claros, ao observar-se assim, na crua nudez da condição humana: a falsa simetria do busto minado pela doença, talhado pela cura, reconstruído pelo ilusionismo da ciência e da técnica.
Olhou-se ao espelho e sorriu. Treze meses. Os sintomas, os receios, o diagnóstico, o pânico. A decisão de lutar, o desafio, a cirurgia e a recuperação. E a terapia. Sobrevivência. Treze meses de uma história de mergulho e recomeço, de escalada a pulso, de emergência e mutação. Ela mesma diferente, a mesma essência completa numa extensão amputada. E refeita.
Olhou-se ao espelho e sorriu. Uma força inexplicável crescia no seu íntimo, porque estivera sempre lá.
«Sou mulher!», gritou por dentro, «Sou mulher e estou viva!...»
Virou costas ao espelho, regressou ao quarto, vestiu-se. Era o dia da última sessão de radioterapia.
Sobrevivência. E vitória.
Sorriu.

sábado, 4 de julho de 2015

Bom Teatro

Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo.
O texto: há mentiras que nos fecham a ponto de nos tornarem prisioneiros da verdade que ocultamos; há obsessões que se abrem dentro de nós a ponto de criarem a única verdade pela qual conseguimos olhar o mundo. O autor, Andre Neely, esgrime estas duas armas com impressionante mestria, lançando-as na arena de uma história polémica. Ainda que possa ser algo previsível (pelo menos para quem partilha estes trilhos da escrita criativa), a peça é de uma incomodativa profundidade e de uma eloquência poderosa. Intensa. Como sabe bem ir ao teatro e deparar com um texto verdadeiramente bem escrito!...
A encenação: limpa e eficaz, revela uma leitura muito atenta e inteligente do texto. O espaço vazio das solidões (in)comunicantes, o frenesim das obsessões e das fugas, a escuridão dos silêncios e das verdades escondidas. As distâncias. E a luz a conduzir-nos, a dirigir o nosso olhar, a manipular a nossa visão da realidade. Como a mentira. E a reter-nos ali, a sufocar em nós a vontade de partir. Como a obsessão. O encenador, Leonardo Garibaldi, servindo o texto, concebeu uma gaiola de criatividade, estruturou o espaço e o tempo de modo a prender os atores (e o público?) na liberdade de ação que lhes concede.
As interpretações: Rita Silvestre e Rui Westermann, dois jovens atores de quem tenho tido o privilégio de acompanhar a evolução, confirmam neste trabalho a sua maturidade. Ambos seguríssimos tecnicamente (corpo, voz e ritmo), é na expressão de sentimentos que o contraste se define: ele é contido o suficiente, ela é necessariamente avassaladora; ele refugia-se num logos comedido, ela explode num pathos desgovernado. Desarmado e omnisciente, ele; perdida e demolidora, ela. Rui espera, Rita supera: a isso os condenam as suas personagens.
O modo como tudo acontece delicia-nos até à dilaceração. Duvidamos cinicamente da mentira dele, demasiado sincera para não ser verdadeira; ao invés, acreditamos dolorosamente na obsessão dela, sofrida demais para não ser um engano. E assistimos, com o regozijo da nossa impotência, à destruição daqueles dois seres tão brilhantemente construída. Intrigados até ao êxtase com o mistério das personagens, fascinados até à dor com o trabalho dos atores, conseguiremos ver ali o espelho de nós próprios? Verdade do teatro, mentira das nossas vidas…
Não é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo: texto, encenação, interpretações. E uma produção competente, capaz de combinar tudo isto em doses certas para no-lo servir em forma de arte. De inquietação. Inquietarte.