segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Texto quinquagésimo primeiro

Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Estremece-me a alma na contemplação desta libertação do teu talento maduro que me envolve no aconchego com que te prendo às noites de menino. Nos sentimentos de alegria e dor que agora interpretas na distância de palavras de outra língua está o olhar sonhador de há anos, quando, bem próximo, declaraste sem palavras que ias partir e ainda não sabias que irias partir.
Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Na segura eloquência da energia que irradias vejo desvendar-se o mistério que contemplo no silêncio custódio de proteger-te a infância frágil. E orgulho-me de comover-me por sentir que é a tua força que me protege da fragilidade de envelhecer e desistir.
O tempo corre, a vida é inteira. Ligamo-nos hoje pelo ontem que aqui nos trouxe, soltamo-nos no amanhã que somos desde sempre. O tempo corre, a vida é inteira. Ver-te adulto no espaço vazio é o prolongamento natural de ter-te recém-nascido nos meus braços cheios. Somos o que fomos, estamos no que somos. E iremos para onde. 

domingo, 13 de setembro de 2015

Conversando... sobre Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro.
Nasceu em 13 de setembro de 1885. É um dos nomes maiores da literatura portuguesa, embora (que eu saiba!...) nenhum currículo escolar o mencione. Trabalhou as letras como uma lavoura artesanal: semeando imagens, enxertando regionalismos, podando a sintaxe e colhendo inovações semânticas. Elevou o elemento rústico da língua portuguesa a um estatuto de obra de arte. E disse-nos como ninguém.
Posso afirmar que a minha escrita cresceu no deslumbramento da sua, a consciência da minha pequenez formou-se na contemplação da sua grandeza.
Em jeito de homenagem, deixo aqui a primeira citação que me lembrei de procurar (terá sido a primeira leitura que fiz dele?...): os parágrafos iniciais da novela O Malhadinhas. Para ler e saborear (e admirar a atualidade).

Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté nos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra – eu cá nunca me avistei com ele – mas a verdade é que a neve vinha com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos. Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer.
Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço. E, quanto mais cismo, mais dou razão ao Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa lua, o que nem sempre assucedia:
─ Tempos virão em que o governarão as terras vãs e os filhos das barregãs.

domingo, 6 de setembro de 2015

Texto quinquagésimo

Porque não podemos fechar os olhos: as imagens acendem-se-nos na mente, retratos alucinantes e invasivos como labaredas. Porque não basta cerrar os ouvidos: o grito ecoa no íntimo, pulsações sonoras e retumbantes como explosões.
Porque somos nós, uma parte de nós que é o todo também, esta humanidade sonhadora e decadente, compassiva e perversa, voluntariosa e inerte. Somos nós de ambos os lados, estamos simultaneamente na perseguição e na fuga, no acolhimento e na rejeição, na angústia e no cinismo. Somos mão estendida e punho fechado, braço erguido ao alto e arma apontada, sorriso sereno, lágrima compungida e cuspidela de ódio. Somos nós de ambos os lados, somos nós de todos os lados e não podemos assistir sem nos dilacerarmos por dentro neste misto de solidariedade e culpa, acusação e remorso. Vida e morte.
Não somos «migrantes», essa designação anódina que nos retira uma identidade de origem sem nos conceder o reconhecimento de um destino. Seremos refugiados, porque deixámos a cratera de tudo o que nos dizia em busca de uma planície onde novamente possamos dizer-nos, fugimos da cova que nos soterrava já configurados com o horizonte que nos liberte. Não estamos perdidos, conhecemos o inferno de que queremos escapar, sabemos o rumo do paraíso que nos prometemos. E não aceitamos que nos ignorem num purgatório de encolher de ombros, que nos dispam a pele humana das nossas emoções e crenças, que nos descarnem em meros tópicos de análise política inanimada. Pedimos o refúgio a que temos direito, exigimos a salvação que suplicamos. Porque somos nós.
Somos nós e estamos vivos, mesmo naqueles que morrem. E morremos um pouco, mesmo naqueles que sobrevivem.
Somos nós, de ambos os lados. De todos os lados. Somos nós. Somos nós…