domingo, 29 de novembro de 2015

Ficção XIV - Abrir a porta

Abriu a porta do quarto como quem retira da gaveta o álbum das recordações mais antigas. Num olhar profundo como um suspiro, varreu a camuflagem poeirenta do tempo decorrido, o exercício teimoso de afastamento, o esforço contra a corrente de não voltar ali. E entrou.
No passo meio arrastado dos seus setenta e dois anos, Maria de Lurdes ocupou energicamente o espaço vazio daquela divisão da casa onde não entrava havia treze anos. Pudessem as paredes opinar e considerá-la-iam igual, a mesma Maria de Lurdes de sempre, maciça de corpo, robusta de espírito, carregada nas feições e nos humores. Nada mudara nela. Ou antes – mas isso as paredes do quarto não saberiam avaliar – tudo o que se alterara no seu modo de ser e agir voltou atrás como o encolhimento de um elástico, no simples movimento de transposição da porta aberta, gesto de retirar da gaveta o álbum de recordações. Um simples avanço no espaço bastou para romper a barreira do tempo. Um olhar profundo como um suspiro, um leve passo em frente, como o voltear da capa forrada do álbum. E Maria de Lurdes reabsorveu por inteiro a alma de que se separara já não se lembrava quando. Talvez no dia em que cerrara a porta e a aprisionara naquele quarto fechado. Ou talvez antes disso, no dia em que aprisionara o quarto na sua alma fechada a cadeado.
Aquele quarto era uma parte da sua vida, era a fatia de existência que lhe valia a vida toda. Maria de Lurdes poisou o olhar na cama de corpo e meio: cabeceira contra a parede, o estrado avançando numa conquista do espaço, os pés fincados no soalho como marcos. Lembrou-se da encomenda na loja de móveis, do registo das medidas e da escolha do arredondado sóbrio dos espaldares; do pagamento adiantado depois de regateada discussão, da irritação causada pela entrega tardia e do cheiro a suor dos trabalhadores encarregados da montagem, que valera uma nova deslocação ao estabelecimento, para exprimir o descontentamento:
— Ó sr. Asdrúbal, diga lá aos seus empregados para tomarem banho e não serem porcalhões, que agora tenho que deixar a casa a arejar durante três dias!... 
Lembrou-se também da outra cama, mais pequena, que ocupara aquele espaço anteriormente, da tímida cama de grades que a precedera e até do berço que existira primeiro, mas numa casa anterior, não ali. E sorriu. Aquele era o quarto do seu filho. José António.

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