domingo, 20 de março de 2016

Texto sexagésimo

Escrever. Resolver uma necessidade interior. Tornar visível um segredo. Ou antes, um mistério. Mais que um mistério, uma inquietude. Mais que uma inquietude, um anseio. Mais que um anseio, um ai.
Escrever. Resolver uma necessidade interior. Soltar uma voz, dar forma de palavras a um grito. Um rugido sufocado, os sonhos todos cá de dentro reprimidos na gaguez lacrimosa desta impotência humana de dizê-los. Pequena demais, a natureza humana. Cala as vozes mais íntimas em nome de princípios de realidade inventados, ao mesmo tempo que fecha os olhos ao mundo numa redução fenomenológica que a encerra na jaula dum quotidiano urgente.
Escrever. Resolver uma necessidade interior. Deixar-me ser, viver o outro que o habita, conceder-me a liberdade que a si próprio recusa. Assumir-me, permitir-me ser-lhe voz na forma de palavras e revelar o segredo, desvelar o mistério, aliviar a inquietude, partilhar o anseio. Pelo menos, em parte: soltar um ai.
Escrever. Soltar um ai. Abrir uma fenda na muralha e respirar. Ser eu na impotência humana dele. Resolver uma necessidade interior.

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