terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Décima oitava alegoria

não se diz um amor
como o nosso não há
palavras certas somos nós
as palavras ditas
no beijo vivas
no abraço soltas
no olhar plenas
na vida eternas
no Deus que nos fez
                                  decisão
                    vontade
          alma
corpo
um para o outro assim
somos nós
o amor antes
e além das palavras

domingo, 15 de janeiro de 2017

Texto setuagésimo sexto

Há um momento em que a própria vida nos trai. Como se roubasse de volta tudo o que, ao longo de anos, nos prodigalizou: noção de tempo e espaço, relações e afetos, visão do mundo e ligação às coisas, memória e história, fruição do presente e anseios de futuro. A absoluta imprevisibilidade do fenómeno torna inútil qualquer antecipação ou prevenção: o idoso adapta-se às progressivas limitações físicas no seu processo de envelhecimento, aceita com certa bonomia os lapsos de memória ou de encadeamento lógico perante os quais recebe a complacência de todos os que o rodeiam (afinal de contas, ele não foi sempre um pouco assim?...); mas isto é outra coisa.
É outra coisa. É um alheamento de si próprio misturado com a progressiva perda de referências exteriores, é um entrincheiramento definitivo da consciência num reduto intraduzível para o próprio. É uma alienação sem regresso, não sabemos o que é. Chamamos-lhe demência e conjugamo-la em diferentes epítetos, consoante as características que lhe identificamos ou de acordo com o nome do investigador que a estudou.
Não sabemos o que é. É um flagelo que se abate sobre o indivíduo sem que ele se dê conta ou, ainda que dê, sem que nada possa fazer para travar a vertigem rumo ao que o espera: o vazio. Dizemos vazio porque não sabemos o que é. O próprio, que o experimenta, está incapacitado de comunicar a experiência; os outros sentem-se incapazes de decifrá-la. Chamamos-lhe demência e, de um lado ou outro do abismo, vivemos a incompreensão e o desespero. E a revolta por uma tremenda injustiça.
O Pai, a peça teatral de Florian Zeller posta em cena no Teatro Aberto, aborda este tema de forma singular: o texto (arguto e sensível) sugere-nos um olhar sobre a demência na perspetiva do doente que a sofre; a encenação (assustadora por tudo o que tem de sedutor) arrasta-nos para o seu próprio mundo, onde nos sentimos tão perdidos como ele. Como ocupar um espaço constantemente alterado? Como alinhar um tempo entrecortado? Como enfrentar entes queridos que já não sabemos como são, que não nos veem como somos (ou cremos ser) e se nos tornam hostis por isso? Como viver numa realidade que permanentemente se confunde e nos confunde? A personagem do Pai (João Perry enérgico e brilhante, como sempre!) irrita-nos até à compaixão, enternece-nos até à raiva. As restantes personagens, à sua volta (um elenco rigoroso, competente e equilibrado), são aterradoramente parecidas connosco no realismo inoperante, no lógico analfabetismo. E na angústia. Queremos dar a mão a este Pai e mergulhar com ele no imenso labirinto de interrogações e medos em que a sua vida se tornou. Mas não sabemos como. Porque lhe chamamos demência e não sabemos o que é. 
E, a seguir, poderemos ser nós.