domingo, 19 de fevereiro de 2017

Texto setuagésimo oitavo

Só precisamos de ser livres. Livres de, mais do que livres para. Aquele que sonha a sua liberdade como um espaço ou um tempo desmedidos onde possa satisfazer os seus caprichos, não passa de um escravo deles mesmos. A verdadeira liberdade não é um território exterior cujas fronteiras se dominam numa luta de ocupação, mas uma atmosfera interior cuja plenitude se conquista numa purificação pelo esvaziamento. Do egoísmo que rebaixa; do preconceito que cega; do medo que tolhe, que traça todas as fronteiras. O medo que origina todas as prisões. A verdadeira liberdade é a superação do medo. A partir de dentro, do centro, do coração. A energia que brota do coração é o amor, única força capaz de preencher a atmosfera interior, de plenificá-la e transbordar, de irradiar e transformar o mundo.
É isto que nos ensina Isabel, a protagonista de Iluminações de uma Mulher Livre. Ensina-nos tudo isto porque é mulher, porque, depois de se deixar prender na sua condição, houve um dia em que ousou libertar-se, revelar-se a si própria e ao mundo. Porque assumiu em si a história de todas as mulheres e todas as mulheres da História. Porque se libertou e tornou-se libertária.
E porque foi escrita por Samuel F. Pimenta. Neste livro, na profundidade e beleza da sua escrita, o Samuel dá-nos o retrato da mulher que há – que deveria haver – em todos nós, desafia-nos a descobri-la, oferece-nos o sonho de liberdade e a promessa da sua concretização. Iluminações de uma Mulher Livre é um livro belo, uma oferenda, um ritual de ascensão do medo ao amor: «O medo é animal, o amor é espiritual».
Pego no livro num acolhimento contemplativo, folheio as páginas em gestos de incensação, devoro a prosa como uma oração interior, música calada que ressoa no meu íntimo. No fim, ao fechá-lo, ecoa-me Santo Agostinho: «Ama e faz o que quiseres».
Só precisamos de ser livres. Só precisamos de amor, para sermos.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Texto setuagésimo sétimo

O dever. A urgência quadriculada das obrigações quotidianas constrange a vontade de parar e gritar. Parar é afastar-me, virar costas ao mundo e às suas lógicas de produtividade e sucesso, partir para dentro à descoberta de tudo. Gritar é escrever, deitar tudo cá para fora no urro gutural da imaginação libertária. Que se esconde no trabalho diário que me esconde. O dever.
Falta-me tempo. Suspendo levemente a tarefa que um dia me apaixonou e hoje ainda me sustenta, olho as minhas mãos. Está tudo nelas: as veias engrossadas pela seiva de tudo o que me corre dentro, os dedos esticados na mímica introvertida de mim, a escrita a querer sair no crescimento silencioso das unhas lentas. A escrita. Falta-me tempo.
E sobra-me dever, que me rouba o tempo. Queria trocar-me comigo, inverter o jogo de máscaras, amachucar para dentro esta remexida diligência profissional que todos veem e pela qual me julgam, e soltar no mundo a energia que todos os dias me resseca e hidrata, sangra-me por dentro e revitaliza-me, num ciclo de implosões fecundas incontáveis. Escrever. Às vezes penso que o mundo seria outro, se eu me virasse do avesso e me mostrasse completamente na eternidade que (não?) sou. Escrever. Porém, que sucederia então à versão conhecida de mim, àquela (real?) imagem que envelhece inscrita no tempo, que se aniquila na formatação do dever? Não suportaria o mergulho na cratera interior do anonimato e, no suicídio, arrastaria esta outra (in)existência desmesurada, eterna no seu constante revigoramento. Escrever.
Falta-me tempo. E sobra-me dever, que me rouba o tempo. Não sou quem julgo ser, cá fora. Sou quem julgo não ser, por dentro. Vivo nas obrigações quotidianas em que morro, camuflando a imortalidade que me povoa.
Porquê?...