domingo, 12 de fevereiro de 2017

Texto setuagésimo sétimo

O dever. A urgência quadriculada das obrigações quotidianas constrange a vontade de parar e gritar. Parar é afastar-me, virar costas ao mundo e às suas lógicas de produtividade e sucesso, partir para dentro à descoberta de tudo. Gritar é escrever, deitar tudo cá para fora no urro gutural da imaginação libertária. Que se esconde no trabalho diário que me esconde. O dever.
Falta-me tempo. Suspendo levemente a tarefa que um dia me apaixonou e hoje ainda me sustenta, olho as minhas mãos. Está tudo nelas: as veias engrossadas pela seiva de tudo o que me corre dentro, os dedos esticados na mímica introvertida de mim, a escrita a querer sair no crescimento silencioso das unhas lentas. A escrita. Falta-me tempo.
E sobra-me dever, que me rouba o tempo. Queria trocar-me comigo, inverter o jogo de máscaras, amachucar para dentro esta remexida diligência profissional que todos veem e pela qual me julgam, e soltar no mundo a energia que todos os dias me resseca e hidrata, sangra-me por dentro e revitaliza-me, num ciclo de implosões fecundas incontáveis. Escrever. Às vezes penso que o mundo seria outro, se eu me virasse do avesso e me mostrasse completamente na eternidade que (não?) sou. Escrever. Porém, que sucederia então à versão conhecida de mim, àquela (real?) imagem que envelhece inscrita no tempo, que se aniquila na formatação do dever? Não suportaria o mergulho na cratera interior do anonimato e, no suicídio, arrastaria esta outra (in)existência desmesurada, eterna no seu constante revigoramento. Escrever.
Falta-me tempo. E sobra-me dever, que me rouba o tempo. Não sou quem julgo ser, cá fora. Sou quem julgo não ser, por dentro. Vivo nas obrigações quotidianas em que morro, camuflando a imortalidade que me povoa.
Porquê?...

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