domingo, 21 de maio de 2017

Texto octogésimo segundo

Na cidade dos homens, a maior riqueza é a diversidade. O logro da globalização é a miragem de um sistema – económico, cultural, religioso ou de qualquer outro tipo – dominante apenas porque é mais forte ou abrangente. Urgência, pois, a de lembrar que a mesma globalização possui virtudes de descoberta e encontro, de aproximação de distâncias e comunhão de diferenças, de aprendizagem pelo contraste. A riqueza do múltiplo. Diversidade.
Contexturas cumpre esta urgência. É um manifesto de diversidade, encontro de distâncias que se acercam, de multiplicidades que se unem para mutuamente se valorizarem. É uma comunhão nascida da diferença. Uma viagem de lonjura e regresso, em que formas e cores se deixam dizer em palavras. Cheira-se um distante calor tropical nas telas de Armanda Alves, respiram-se aromas de especiaria, escuta-se a vastidão melancólica de planícies e oceanos e céus. E adivinham-se risos e choros de gentes várias. Esta fulgurante abstração vem ter connosco na inspiração espontânea e intuitiva – dir-se-ia uma actionwriting – dos contos de Luísa Fresta. As narrativas mergulham em nós, ou nós nelas, na imediata identificação das virtudes e vícios de todas as personagens tão próximas, nossas vizinhas por dentro. Porém, tudo o que nelas é banal se supera na penetrante elevação da escrita, que bebe da transcendência das telas e nela se projeta novamente. Encontro de diferenças. A riqueza do múltiplo. Diversidade.
Ainda de livro aberto, na incessante leitura das buscas em que me perco, fico assim reencontrado nesta encruzilhada, «contexturizado» entre a transcendência da pintura, a profundidade da escrita e a prosaica familiaridade das histórias que ambas contam. E, de alguma forma, cresço na compreensão do ser humano. Acrescento-me na noção de mim mesmo perante esta obra tão inesperada e diferente. 
Contexturas: uma leitura urgente. Porque, na cidade dos homens, a maior riqueza é a diversidade.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Texto octogésimo primeiro

Há circunstâncias em que a vida pára. Suspende-se, intemporal. Concentra-se toda naquele instante único em que se vive inteira. Quando nasce um filho, por exemplo. Ou uma filha, neste caso. Quando tu, há dezanove anos. Não foste a primeira, mas és tão – ou mais – importante por isso mesmo: és continuidade, renovação e diferença. Trouxeste-nos a noção de que a vida segue, de que os sonhos não cristalizam nas primeiras metas atingidas, mas reinventam-se sempre. Reafirmaste em nós a esperança de que tudo pode ser outra vez outra coisa e mais. Não poderias ser melhor, porque não podes ser outra, não poderás tornar-te pior, porque és tu mesma. Nasceste. Ocupaste entre nós um espaço que estava vazio sem que o soubéssemos, preencheste-o de uma forma que torna a tua ausência inconcebível. Como se sempre tivesses estado aqui. Surgiste do desejo inefável que nos habitava e deste-nos o tesouro da tua pessoa incomparável. Para nós, continuas a nascer todos os dias.
Há circunstâncias em que a vida pára. Suspende-se, intemporal. Concentra-se toda naquele instante único em que se vive inteira. E vale por isso. Tudo o que escrevi estava naquele momento em que tu, há dezanove anos. Desde então, continuo a viver esse momento, como uma eternidade estendida na finitude dos meus dias. Já eras em nós antes de existires e nós permaneceremos em ti quando já não formos. Porque és nossa filha. Porque tu.