domingo, 12 de novembro de 2017

Ficção XVIII - Estava a olhar para mim (a partir de «A Chave Perdida»)

Estava a olhar para mim como se me sugasse as entranhas, vidrou-me os olhos e secou-me todas as mucosas, anulou-me naquela contração magnética, aquele vácuo de tudo em mim. Percebi que ia falar, decerto convocaria uma qualquer vibração das profundezas da terra, tal era o poder da sua presença estática. Fiquei na expectativa de um oráculo, uma frase profunda e imensa como aquele olhar, que eu guardaria para sempre no meu espírito sedento. E falou, uma voz sonora, encorpada e fria, ressumando indiferença:
— A rodela de limão põe-se antes da água tónica.
E afastou-se numa pirueta elegante como o voo de um condor, abrindo espaço à passagem da bolha desinfetada em que se movia, o gelo que tilintava no copo decerto mais quente do que o resíduo petrificado em que congelei, a pensar apenas em que ponto das operações é que tinha posto o raio da rodela de limão dentro do copo…
Voltou cerca de um quarto de hora depois, abeirou-se de mim no mesmo passo cheio de mundo, olhou-me para dentro com a mesma força, o corpo todo carregado no olhar perfurante. E pediu-me outro gin tónico. Mas aquele hiato de tempo devolvera-me, recuperei da secura, novamente insuflada da irreverência de bater a porta, descomprometida no vazio de nunca. Novamente curiosa como nunca soube não ser, provocadora como sempre gostei de ter sido. Peguei num copo vazio, estendi-lho, inclinei a cabeça e olhei-o levemente de lado, resistindo a deixar-me despenhar de novo no seu abismo. E disse-lhe:
— Ensine-me, por favor.
O copo tremia-me na mão, a mão tremia-me no braço, o braço abalava-me o corpo que me parecia deslocar o próprio eixo da Terra. Ele segurou o olhar em mim, sorriu-me num trejeito demolidor, senti que me dera uma bofetada. Roubou-me o copo numa carícia, preparou a bebida em silêncio com uma elegância de artista. Depois, em jeito de brinde, ergueu o copo no espaço entre nós e eu senti um muro derrubar-se.
— A essência do limão deve libertar-se diretamente no gin – explicou, a mesma voz cheia agora aquecida num tom de lição estudada. – A água tónica vem depois, para diluir a concentração e suavizar o paladar. Se assim não for, isto confunde-se com qualquer mistura reles.
Sorri-lhe uma resposta de circunstância, ele fitou as garrafas sobre o balcão, referiu-se às bebidas como se falasse de obras de arte, depois olhou em volta e comentou a decoração artística da sala como se se tratasse de aperitivos. Fascinou-me o modo como tornava diferentes todas as coisas que mencionava, parecendo olhá-las de alguma maneira que eu não conseguia. Outra coisa.
Pouco depois seguiu o grupo para a sala de jantar, diluiu-se nele, como se tivesse picado a bolha de invulgaridade para se acomodar entre iguais. Percebi, naquela distância, o que me separava do seu mundo, tanto quanto senti crescer a curiosidade, a sedução. O desejo dele.

(Fotografia de Carlos Alberto Cavaco)

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